
Calciopédia
·21 de octubre de 2025
Em 1962, uma Juventus em crise foi despachada da Europa por um histórico Real Madrid

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·21 de octubre de 2025
Raros confrontos se transformam em símbolos de uma época no futebol. Em fevereiro de 1962, a Juventus e o Real Madrid mediram forças pela primeira vez em partidas oficiais, nas quartas de final da Copa dos Campeões, e inseriram o encontro nesse grupo. E não foi só pelo fato de o embate ter marcado o início de uma rivalidade duradoura em nível europeu.
De um lado, tivemos o clube que havia definido os contornos do torneio, com cinco títulos consecutivos em suas cinco primeiras edições, e ainda contava com craques da grande dinastia merengue. Do outro, uma Juve em transição, enfraquecida após o adeus de Giampiero Boniperti, um de seus maiores ídolos, e já sem a mesma força doméstica – mas que reunia estrelas como John Charles e, sobretudo, Omar Sívori, vencedor da Bola de Ouro de 1961. Naqueles tempos, a arena europeia ainda era ingrata para uma Velha Senhora que engatinhava nesses palcos e nem mesmo a imposição do fim da invencibilidade caseira dos blancos em torneios da Uefa mudou esse quadro a favor dos bianconeri.
A temporada 1961-62 tinha começado sob os piores auspícios para a Juventus. Depois de faturarem o scudetto, os bianconeri foram entregues ao comando de Július Korostelev e Gunnar Gren, mas a fórmula fracassou em poucas rodadas da Serie A. O presidente Umberto Agnelli se viu obrigado a resgatar Carlo Parola, treinador campeão meses antes e que havia saído por atritos internos. A manobra não bastou para conter a derrocada de uma equipe que sofria com a dissolução do Trio Mágico, devido à aposentadoria de Boniperti.
O time se arrastou no campeonato, fragilizado também pelos problemas físicos de Charles, um dos integrantes do lendário tridente ofensivo. O galês vinha de cirurgia no joelho e, por conta dos efeitos da lesão, iniciava curva descendente em sua trajetória esportiva. Restava Sívori, que também costumava lidar com contusões devido à dura marcação dos adversários. Por ser temperamental, o ítalo-argentino ainda era sujeito a chuvas e trovoadas.
A Juve viveu um dos piores anos de sua história no campeonato, terminando em 12º lugar e igualando o recorde negativo de 1955-56. Em especial, o fim de torneio foi desastroso: somou apenas um ponto nas últimas 10 rodadas e não venceu nenhuma vez em casa. O contraste com a glória recente era brutal, e apenas nas competições de mata-mata a equipe conseguiu respirar um pouco.
A Velha Senhora seria quarta colocada na Coppa Italia e chegou a ver a Copa dos Campeões como oportunidade de salvar a honra. Até bater de frente com o Real Madrid, naquele mês de fevereiro. Aliás, foi a eliminação no torneio continental que tirou os bianconeri do prumo definitivamente, visto que a gigante encaçapou uma sequência de sete derrotas após a queda e terminou a Serie A sem voltar a pontuar.
Em 1961-62, a Juventus disputava apenas pela terceira vez a Copa dos Campeões, até então fiel a sua nomenclatura e reservada apenas para os vencedores das ligas nacionais e para a equipe que faturava o título da própria competição – para efeitos de comparação, o Real Madrid esteve presente nas seis edições anteriores e jogava a sétima com cinco taças em sua sala de troféus, como dito anteriormente. E, se a história dos merengues era sinônimo de vitórias, a dos bianconeri era marcada por fracassos na primeira fase: eliminações com viradas e goleadas para Wiener SK (8 a 3 no placar agregado, com direito a 7 a 0 na Áustria) e CDNA Sofia (4 a 3 no total, com 4 a 1 para o time que viraria CSKA Sofia, na Bulgária). Em suma, participações para serem esquecidas em 1958-59 e 1960-61.
O sorteio inicial da edição de 1961-62 colocou a Juventus frente ao Panathinaikos, que foi superado com dificuldade – 3 a 2, afastando a sina da eliminação precoce. Contra o Partizan, da antiga Iugoslávia, os bianconeri mostraram seu melhor futebol europeu até então: uma vitória por 2 a 1 em Belgrado e um contundente 5 a 0 em Turim. Sívori, Charles e Humberto Rosa pareciam encontrar a química, e os torcedores voltaram a sonhar. Mas o destino, cruel, reservou o Real Madrid como adversário seguinte.
Capitão da Juventus, o atacante Charles foi improvisado no sistema defensivo durante toda a eliminatória (Ansa)
Os blancos, por sua vez, vinham de uma breve queda de prestígio após perderem a coroa em 1961 – e mordidos, pois o sorteio aprontou das suas e eles terminaram eliminados na estreia pelo rival Barcelona, no primeiro confronto entre times do mesmo país na competição. A fome de retomar o trono europeu era evidente. Com Alfredo Di Stéfano, duas vezes Bola de Ouro, Ferenc Puskás e Francisco “Paco” Gento ainda em alto nível, os espanhóis atropelaram Vasas e B 1913 nas fases anteriores, aplicando goleadas que serviam de aviso: respectivamente, 5 a 1 sobre o time da Hungria e incríveis 12 a 0 contra a pobre equipe da Dinamarca. O sorteio parecia, a princípio, uma sentença para a Juventus.
O jogo de ida, em 14 de fevereiro de 1962, levou mais de 66 mil torcedores ao Comunale de Turim. A Juve vinha de uma derrota em Catania e mergulhava na mediocridade do campeonato, mas o fascínio de enfrentar o Real Madrid ainda mobilizava multidões – tanto é que o estádio ficou lotado em plena tarde de quarta. Parola escolheu Charles como capitão no confronto, só que o improvisou na zaga, tamanho o estado de emergência defensiva, por conta dos muitos desfalques no setor, e lançou uma formação inusitada contra o colosso espanhol. Algo temerário para encarar Gento, Di Stéfano e Puskás.
Os desfalques fizeram Parola orientar a equipe a adotar uma postura muito conservadora, quase como se renunciasse da partida – o que surpreendeu negativamente a torcida e, por outra perspectiva, o Real Madrid, que tinha o dever de propor o jogo. A covardia da Juventus foi punida aos 70 minutos: Di Stéfano, até então discreto, recebeu passe na entrada da área, dominou com calma e bateu no contrapé de Roberto Anzolin.
Poucos minutos depois, em meio a uma ineficiente tentativa de reação bianconera, Sívori sofreu falta dura do brasileiro Canário, logo após a linha central. Foi o estopim de uma das cenas mais lembradas daquele confronto. O argentino, que tinha o apelido de El Cabezón (sim “cabeção”), por causa da cabeleira espessa e escura, que passava a sensação de um crânio de grandes proporções, explodiu em fúria e precisou ser contido às pressas por Charles, sempre seu “anjo da guarda” nos momentos de descontrole, e até por Di Stéfano, que gozava de respeito universal. Mas a tensão não arrefeceu.
No corre-corre para cobrar a falta, o defensor Pachín, que já perseguia Sívori com entradas duras, resolveu provocá-lo com uma frase de cunho racista, ofendendo a miscigenação da população sul-americana: “só faltam as penas para você ser um autêntico índio”. O camisa 10 da Juve não se conteve: acertou uma cabeçada e fraturou o nariz do espanhol. O árbitro Albert Dusch não viu nada e ambos ficaram impunes. O Real Madrid protestou, mas acabou se resignando por ter encaminhado a vitória em Turim e pela confiança de resolver tudo em casa, no Santiago Bernabéu, sem imaginar que a provocação daria ainda mais combustível ao Cabezón.
Uma semana depois, em 21 de fevereiro, o cenário no Bernabéu parecia prenunciar a confirmação do favoritismo merengue. Nunca uma equipe estrangeira havia vencido no estádio em jogos de Copa dos Campeões. A Juve, trajando um uniforme inteiramente negro, que contrastava com o branco madridista, entrou em campo contra os 120 mil presentes, mas foi justamente ali que viveu sua noite mais gloriosa da década. As vaias da multidão animavam Sívori e, se Di Stéfano tinha brilhado em Turim, seria a vez de outro dono da Bola de Ouro, também de origem argentina, iluminar a noite de Madrid.
Parola contou com as recuperações de Bruno Garzena e Giancarlo Bercellino, reforçando a retaguarda, mas manteve Charles na defesa. O galês atuou como líbero, podendo subir ao ataque, e usou de forma incomum a camisa 4, em sucessão à 5 da partida de ida – somando os dois números, chegaríamos a seu habitual 9. Ainda que fora de posição, terminaria sendo um dos destaques da peleja, por seu esforço incansável nos dois lados do campo. Não por acaso, foi justamente o gigante gentil quem saltou mais alto que dois defensores espanhóis para dar a assistência para Sívori anotar o gol do jogo. El Cabezón superou José Araquistáin com um chute de canhota.
A torcida da casa ficou ressabiada. Afinal, nas 19 partidas anteriores de Copa dos Campeões disputadas em seu estádio – incluindo a final de 1957 contra a Fiorentina, jogada em pleno Bernabéu – o Real Madrid havia conquistado 18 vitórias e apenas um empate, no ano anterior, no clássico com o Barcelona. Em outras palavras: todos os times estrangeiros haviam perdido no caldeirão blanco. Os merengues tinham 82 gols marcados e apenas 11 sofridos.
No intervalo, Gento e Di Stéfano ameaçaram não voltar para o segundo tempo se a arbitragem não mudasse de roupa – para eles, o calção do juizão Maurice Guigue, preto como o dos juventinos, estava atrapalhando. De maneira insólita, o francês teve que pegar emprestada a parte de baixo do uniforme reserva do Real Madrid, de cor violeta. De qualquer forma, a Vecchia Signora segurou o resultado e impôs aos merengues a sua primeira derrota no Bernabéu em competições europeias. Consequentemente, foi a primeira vitória de um italiano no estádio.
Num duelo de craques, Puskás não marcou gols, mas distribuiu assistências no terceiro dos jogos (imago)
Naquela época, em caso de igualdade no placar agregado entre ida e volta, não estavam previstos prorrogação e pênaltis, mas sim a disputa de uma partida de desempate em campo neutro. Foi o que ocorreu uma semana depois, em 28 de fevereiro, em Paris, onde mais de 36 mil pessoas se reuniram nas arquibancadas do Parc des Princes para assistir ao duelo decisivo. Charles, dessa vez, atuaria um pouco mais avançado – contudo, ainda longe do ataque, exerceu a função de volante. O Real Madrid, por sua vez, tinha o retorno de Pachín, que voltaria a atazanar Sívori após a fratura nasal.
O início do desempate em Paris foi um pesadelo para a Juventus. O árbitro francês Pierre Schwinté mal havia apitado quando, logo no primeiro minuto, Puskás encontrou com precisão o volante Felo infiltrado na área bianconera. A defesa, ainda desorganizada, foi surpreendida, e o espanhol não teve dificuldades para antecipar Anzolin e abrir o placar. Um 1 a 0 que parecia inacreditável após todos os esforços dos italianos na Espanha, mas que evidenciava por que aquele time tropeçara tanto ao longo da temporada.
A resposta piemontesa, porém, não demorou. O golpe inicial teve o efeito de despertar a Juventus, que passou a jogar sua melhor primeira etapa em toda a eliminatória. Sívori, em tarde inspirada, infernizava a retaguarda merengue, obrigando o uruguaio José Santamaría a fazer um esforço redobrado para contê-lo. Até que, aos 33 minutos, o craque italo-argentino – sempre ele – recebeu um passe perto do centro do campo, avançou com determinação e bateu com categoria, de canhota, na saída de Ariquistáin: 1 a 1. Era o prêmio pela insistência, que renovava a esperança bianconera.
Antes do intervalo, Anzolin ainda fez um milagre, negando um gol quase certo de Luis del Sol, numa conclusão cara a cara. A Juve conseguia conter, com sacrifício, o poder de finalização das estrelas maiores do Real Madrid, mas sofria com as infiltrações dos meias – e também com a habilidade de Puskás na articulação. Era um limite da marcação homem a homem utilizada frequentemente naquela época.
A segunda etapa começou com equilíbrio, até que aos 55 minutos, novamente Del Sol apareceu para castigar a Vecchia Signora. Após falta batida por Puskás da direita, o posicionamento imperfeito da defesa italiana foi punido: o meia se antecipou e desviou de cabeça para o gol, recolocando os hispânicos em vantagem. Curiosamente, ele vestiria a camisa bianconera a partir da temporada seguinte, sendo o primeiro jogador a trocar o Madrid pela Juve.
A Vecchia Signora ainda teve chances para reagir com Sívori, mas o argentino desperdiçou duas oportunidades claras. Como se não bastasse, aos 71 veio o golpe derradeiro: Gino Stacchini, lesionado, precisou abandonar o campo, deixando a equipe com um homem a menos. Charles, que já vinha sofrendo com pancadas duríssimas, especialmente de Santamaría, mal conseguia se impor e lidava com um problema físico desde os 15 minutos. E, na casa dos 82, o caixão italiano foi fechado. Di Stéfano acionou Puskás, que achou Justo Tejada livre no coração da área, com um passe de primeira: o ponta não perdoou e aproveitou a terceira assistência do craque húngaro, selando a classificação espanhola.
A Juventus, mesmo derrotada, saiu de Paris com a cabeça erguida. Pela primeira vez havia alcançado as quartas de final da Copa dos Campeões e, sobretudo, deixava registrado o feito de ter quebrado a invencibilidade dos espanhóis no Bernabéu – inclusive, os blancos só voltariam a perder em seus domínios em 1967, sendo derrubados pela chamada Grande Inter. Era um consolo em meio ao vexame doméstico, que mostrava um time em fim de ciclo e incapaz de manter o brilho de temporadas anteriores. Já o Real Madrid seguiu adiante até a final de Amsterdã, onde caiu por 5 a 3 diante do Benfica de Eusébio, apesar da tripletta de Puskás. Sem o implacável domínio de outrora, os merengues levantariam a orelhuda novamente só em 1966.
No balanço, aqueles duelos de 1962 marcaram um ponto de inflexão para ambos os clubes: a Juventus, com sua temporada esquizofrênica, entre ruína interna e lampejos internacionais; o Real Madrid, entre a nostalgia de seus heróis e a necessidade de renovação. Mas, para a memória do futebol europeu, ficou o registro de quando Sívori e a Juve desafiaram Di Stéfano, Puskás e Gento em seu próprio território – e ousaram vencer, ainda que isso só tenha tido, de fato, efeito estatístico.
Juventus: Anzolin; Sarti, Charles, Castano; Mazzia, Leoncini; Mora, Rosa, Stacchini; Sívori, Nicolè. Técnico: Carlo Parola. Real Madrid: Araquistáin; Santamaría; Pachín, Casado, Miera; Del Sol, Felo; Canário, Di Stéfano, Puskás, Gento. Técnico: Miguel Muñoz. Gol: Di Stéfano (69′) Árbitro: Albert Dusch (Alemanha Ocidental) Local e data: estádio Comunale, Turim (Itália), em 14 de fevereiro de 1962
Real Madrid: Araquistáin; Casado, Santamaría, Miera; Del Sol, A. Ruiz, F. Ruiz; Tejada, Di Stéfano, Puskás, Gento. Técnico: Miguel Muñoz. Juventus: Anzolin; Charles; Sarti, Bercellino, Garzena; Mazzia, Leoncini; Mora, Sívori, Nicolè, Stacchini. Técnico: Carlo Parola. Gol: Sívori (38′) Árbitro: Maurice Guigue (França) Local e data: estádio Santiago Bernabéu, Madri (Espanha), em 21 de fevereiro de 1962
Real Madrid: Araquistáin; Santamaría; Pachín, Casado, Miera; Del Sol, Felo; Tejada, Di Stéfano, Puskás, Gento. Técnico: Miguel Muñoz. Juventus: Anzolin; Sarti, Bercellino, Garzena; Mazzia, Charles, Leoncini; Mora, Sívori, Nicolè, Stacchini. Técnico: Carlo Parola. Gols: Felo (1′), Del Sol (65′) e Tejada (82′); Sívori (33′) Árbitro: Pierre Schwinté (França) Local e data: estádio Parc des Princes, Paris (França), em 28 de fevereiro de 1962