Trivela
·30 de novembro de 2022
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O duelo entre Tunísia e França carrega uma herança pesada. Durante 75 anos, o país no norte da África foi explorado como colônia pelos europeus. Os reflexos dessa relação permanecem ainda hoje, inclusive no elenco tunisiano que disputa a Copa do Mundo. Dez jogadores das Águias de Cartago nasceram em cidades francesas. Já nas arquibancadas, se os torcedores da Tunísia vinham dando show nas partidas anteriores, o apoio deve ser ainda mais fervoroso diante dos antigos colonizadores. Os dois principais clubes do Campeonato Tunisiano, afinal, possuem a luta anticolonial em seus DNA's. Espérance e Club Africain têm em comum um passado no qual se opunham ao domínio francês.
O futebol se estabeleceu na Tunísia, e na capital Túnis, a partir dos primeiros anos do Século XX. A primeira competição organizada na cidade surgiu em 1904. Os clubes eram atrelados diretamente aos europeus. A maioria tinha ligações com os colonizadores franceses, mas também existiam outros relacionados às comunidades de italianos e malteses, expressivas na cidade. Quando o primeiro time franco-árabe surgiu, o Stade Africain, ainda tinha mais franceses do que tunisianos. Outra equipe significativa era o Stade Tunisois, ligado à população judaica.
Em 1917, uma final entre Stade Africain e Stade Tunisois terminou em violência entre os torcedores. O episódio suspendeu as competições esportivas em Túnis, até que a situação fosse apaziguada com a união de ambos os times. Stade Africain e Stade Tunisois, que estavam sediados na mesma vizinhança, se fundiram e passaram a formar a Union Sportive Tunisienne. Era a agremiação mais forte do país, mas nem todos estavam satisfeitos. Alguns membros sentiam que o clube não era suficiente árabe. Foi o ponto de partida para o Espérance.
Ainda em 1917, dois jovens tunisianos se reuniram no Café Espérance para criar um novo clube de futebol. A ideia era servir de contraponto aos times das demais comunidades, para aglutinar a população árabe e muçulmana ao seu redor. A proposta de reunir apenas islâmicos, todavia, seria barrada de início. A legislação da época exigia que todas as organizações locais fossem administradas por cidadãos franceses. Assim, Louis Montassier acabou forçosamente apontado como primeiro presidente honorário.
O ano oficial da fundação do Espérance é 1919, quando as autoridades coloniais aprovaram a existência do clube. Meses depois, a legislação ainda mudaria e não seria mais necessário contar com um presidente francês. Montassier acabaria destituído e Mohamed Melki assumiu como primeiro mandatário tunisiano. Naqueles primórdios, o time usava uniformes alviverdes, cores vinculadas ao islamismo. Era um clube com recursos limitados, que reunia muitos jovens. E se o nome “Espérance” fazia referência ao café onde tudo começou, ele transmitia um significado mais forte: era uma esperança de maior representatividade à comunidade árabe. Essa camada antes marginalizada nas demais agremiações teria um clube para si, de forma a se afirmar na sociedade.
A princípio, o Espérance não possuía um caráter nacionalista, mas salientava as raízes muçulmanas. Com o tempo, a política de aceitar apenas árabes na agremiação reforçou o elemento nacional ao redor dos tunisianos. E o time ganhou popularidade, mesmo que seus resultados nas competições nem chamassem tanta atenção. Isso aproximou o Espérance também das elites árabes, que enfatizaram ainda mais esse posicionamento em prol de um nacionalismo, na virada dos anos 1920 para os anos 1930.
(CHANDAN KHANNA/AFP via Getty Images/One Football)
Paralelamente, o principal rival do Espérance também começou a ser concebido em 1919. E a ideia inicial do Club Africain era muito parecida, ao dedicar um espaço para a união da população árabe e muçulmana. Parte de seus membros vinha inclusive do antigo Stade Africain. O projeto tinha um caráter nacionalista mais forte, a começar pela escolha das cores do uniforme, vermelho e branco, as mesmas da bandeira. O escudo também trazia símbolos islâmicos, enquanto o nome original deveria ser Club Islamique Africain. Tais elementos acabaram refutados de início pelas autoridades coloniais.
Como a legislação exigia a presença de um presidente francês em qualquer agremiação, o Club Africain sequer saiu do papel em seus primeiros meses de formação, ao recusar tal interferência. Somente depois que a determinação caiu é que realmente o clube foi fundado, em 1920. Pôde adotar os elementos nacionalistas no escudo e no uniforme, mas a menção “Islamique” no nome acabou vetada. Com o passar dos anos, Espérance e Club Africain tinham bases de torcedores sólidas nas regiões de Túnis que representavam. Os alvirrubros, ainda assim, possuíam uma identidade menos elitizada.
As atividades do Club Africain não se restringiam ao futebol. Os alvirrubros se envolviam em importantes ações culturais para reafirmar a identidade tunisiana e o nacionalismo de diferentes maneiras. O clube chegou a formar sua própria companhia de teatro na década de 1930, enquanto também participou da criação de uma organização local para fomentar a música tunisiana. A intenção era se distanciar da influência europeia e francesa, numa postura contra o domínio colonial.
Em seu próprio caminho, o Espérance também tinha iniciativas parecidas. E uma figura fundamental nesse processo era Habib Bourguiba, um jovem advogado que havia se formado em Paris e retornou a Túnis com fortes convicções nacionalistas. Como membro da diretoria, ele passou a aproveitar a penetração do Espérance em diferentes camadas para transmitir seus ideais e fortalecer a luta por um estado independente. Desde a década de 1920, o clube havia trocado suas cores alviverdes para adotar o vermelho e o dourado – o “Sangue e Ouro” que viraria um dos apelidos da equipe e sugeria uma relação mais forte com as questões nacionais.
Durante a década de 1930, Espérance e Club Africain se estabeleceram na primeira divisão local. Na época, a competição seguia dominada pelos clubes ligados a colonialistas e comunidades estrangeiras. Ainda assim, os times com raízes árabes atraíam cada vez mais público entre os tunisianos. Habib Bourguiba chegou a propor uma fusão entre Espérance e Club Africain, num momento em que os dois clubes já nutriam uma nascente rivalidade. Tal ideia seria rechaçada, com os dois representantes islâmicos seguindo por caminhos diferentes.
A década de 1940 seria importante para os dois rivais. O Espérance conquistou o campeonato nacional pela primeira vez em 1942, numa rara edição realizada durante a Segunda Guerra Mundial. Já o Club Africain alcançou o feito inédito em 1947 e logo emendou um bicampeonato em 1948. O pós-guerra, aliás, veria o troféu dominado também por outros clubes de origem árabe sediados em cidades além de Túnis – como o Bizertin, o Étoile du Sahel e o Hammam-Lif. A exceção ficaria para o título do Sfax Railways Sports, campeão em 1953. De certa maneira, o futebol refletia o país onde os movimentos nacionais se fortaleciam e logo liderariam à independência. Romper o domínio dos estrangeiros na liga tinha um significado além da bola.
(Lars Baron/Getty Images/One Football)
A primeira metade da década de 1950 na Tunísia seria marcada ainda mais pela luta anticolonial. A pressão para o fim do domínio francês daria resultado em 1956, com a declaração de independência. Quem era a principal liderança, que assumiria o cargo de primeiro-ministro e pouco depois de presidente? Ninguém menos que Habib Bourguiba, após duas décadas em que passou períodos exilado e preso, como líder dos independentistas. O antigo dirigente do Espérance ficaria 30 anos na presidência, num período que mescla a falta de democracia com a modernização de diferentes setores. Naturalmente, o Sangue e Ouro passaria a ser associado como o clube ligado ao poder, sobretudo pela associação de seus presidentes com o governo.
Tal cenário ampliou as distâncias entre Espérance e Club Africain. Os dois clubes seguiam amplamente populares, mas um tinha sua ligação com o estado e outro se contrapunha como um símbolo da contracultura. Não que isso influenciasse no equilíbrio de forças do Campeonato Tunisiano, porém. Até 1987, os dois rivais da capital somavam oito títulos cada. Outros clubes de fora de Túnis também tinham seu peso – com sete troféus para o Étoile du Sahel, cinco para o Sfaxien e quatro para o Bizertin. Todos eles ligados à comunidade árabe e ao caráter nacionalista tunisiano em seus primórdios.
O desequilíbrio no cenário do futebol nacional ocorreria principalmente a partir do golpe de estado que derrubou Bourguiba e iniciou a ditadura de Zine El Abidine Ben Ali, em novembro de 1987. O novo presidente usaria o Espérance como uma ferramenta mais clara de poder, ao botar seu genro no comando. A equipe despontou a um claro domínio na liga, sob acusações de favorecimentos ilícitos. De 1988 a 2011, quando a Primavera Árabe derrubou Ben Ali, o Sangue e Ouro ficou com 16 taças, enquanto os demais rivais somaram juntos oito troféus. E a chamada Revolução de Jasmin impactou no futebol. Permitiu a criação de um sindicato de jogadores e de processos democráticos nas eleições dos clubes, mesmo que a hegemonia continue com o Espérance.
A força nos bastidores distanciou o Espérance do Club Africain no número de conquistas. O Sangue e Ouro atualmente acumula 32 títulos do Campeonato Tunisiano, enquanto El Club tem apenas 13 taças, mesmo como segundo maior campeão do país. As glórias sustentam a popularidade do Espérance, mas o Club Africain se mantém como uma força oposta ao status quo. E, nos últimos anos, ganhou eco uma disputa particular pelo pioneirismo histórico: os alvirrubros reivindicam para si o status de primeiro clube totalmente muçulmano da Tunísia, algo que a maioria das fontes costuma atribuir aos rivais. O que não se nega é a influência de ambos nos movimentos nacionalistas e no fomento da luta anticolonial. Nesta quarta-feira, será a vez das torcidas se unirem tal qual naquelas décadas de 1920 a 1950, porque o oponente será o velho opressor em comum, e pela primeira vez em plena Copa do Mundo.