Terra de Zizou
·20 de fevereiro de 2023
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O ano era 2004. O Olympique Lyonnais, outrora mero figurante do futebol francês, já podia ser considerado a força máxima do país. Era o atual tricampeão nacional e tinha um elenco repleto de jogadores internacionais, como Grégory Coupet, Sylvain Wiltord e, claro, Juninho Pernambucano. O Saint-Étienne vinha na contramão. Mesmo sendo o time que mais vezes ergueu a taça do Campeonato Francês na época, com dez troféus, os Verdes se transformaram em coadjuvantes no cenário local. Não à toa, enquanto o OL empilhava conquistas, o ASSE patinava na 2ª divisão, voltando em 2004/05.
Foto: AFP Photo / Martin Bureau – OneFootball
Foto: AFP Photo / Martin Bureau – OneFootball
Foto: AFP Photo / Martin Bureau – OneFootball
A tabela colocou os dois rivais frente a frente na 9ª rodada do Campeonato Francês, no dia 3 de outubro, no Geoffroy-Guichard. A diferença de cenários entre os dois times era notória até mesmo naquele início de temporada. O Lyon, dirigido por Paul Le Guen, estava invicto, com quatro vitórias e quatro empates. Somente Monaco e Lille tinham campanhas melhores que os atuais tricampeões. O Saint-Étienne, recém promovido, empatou metade dos jogos que fez e venceu só um. Estava em 17º, posição frustrante, já que mesmo voltando de divisão inferior, investiu em contratações pesadas, como Zoumana Camara, Didier Zokora e, especialmente, Frédéric Piquionne e Pascal Feindouno.
Não era exagero algum dizer: o Lyon era o favorito. A própria escalação que Le Guen mandou a campo indicava isso, repetindo exatamente a mesma formação que dias antes bateu o Sparta Praga, na República Tcheca, pela fase de grupos da Liga dos Campeões. Coupet era o goleiro; na defesa, Réveillère e Berthod estavam nas laterais, com um miolo de zaga brasileiro formado por Cris e Caçapa; no meio-campo, o forte trio composto por Diarra, Essien e Juninho; o ataque falava, literalmente, a mesma língua: Govou, Malouda e Wiltord.
No Saint-Étienne, Élie Baup trocou algumas peças, mas manteve o 4-3-3 da rodada anterior, quando foi vencido pelo Sochaux: Janot no gol; Cartheron, Camara, Hognon e Ilunga na defesa; Zokora, Sablé e Hellebuyck no meio; e o ataque foi formado por Marin, Piquionne e Feindouno.
A bola rolou no Geoffroy-Guichard e o ritmo adotado pelas duas equipes foi alucinante nos primeiros minutos. Com menos de 20 de jogo corrido, duas chances para cada lado. Pro Lyon, Wiltord aproveitou vacilo de Camara e Juninho explorou uma já tradicional cobrança de falta para obrigar Janot a trabalhar. Pelo Saint-Étienne, Marin e Feindouno tiveram chances frustradas também.
Na época, Juninho já era conhecido pelas venenosas e precisas cobranças de falta. Não tinha distância, nem lado. Se o camisa 8 pudesse, ele batia direto e assustava os goleiros adversários. O Saint-Étienne, aparentemente, faltou a essa aula e não cumpriu a lição à risca . Na primeira falta, Janot defendeu, mas na segunda, aos 34 minutos, não teve como. E o interessante é que ela foi quase do mesmo local: lado esquerdo, pela intermediária. A diferença fundamental foi a ‘ajudinha’ da barreira. Depois que Juni soltou o pé direito, somente um dos quatro homens pulou. A bola passou por cima dos três que ficaram plantados no solo. Ela desceu sorrateiramente na hora de entrar no gol. Era o 1 a 0 dos visitantes.
Só que a bola parada também era uma arma do Saint-Étienne e foi assim que o time da casa buscou a virada na etapa final. Logo aos 3 minutos, escanteio jogado na área, o Lyon não conseguiu afastar em definitivo, até que a bola sobrou para Ilunga. No bom português, pode-se dizer que ele ‘sentou o sapato’ e viu Marin desviar de leve para marcar o gol de empate. Não demorou muito e veio a virada com Feindouno. Hellebuyck cobrou falta na área, o camisa 14 se desvencilhou de Berthod e marcou de cabeça, aos 15.
Bola parada lá, bola parada cá e Geoffroy-Guichard em chamas com a virada dos anfitriões.
A virada no placar obrigou Le Guen a quebrar a cabeça. Não havia outra saída a não ser soltar o time. Caso confirmada aquela derrota, o Lyon veria um tabu de dez anos ir embora. A última vez que o ASSE havia vencido um derby tinha sido em abril de 1994. Daquele dia em diante, deu OL em três oportunidades, além de quatro empates. Por isso, abriu de vez a equipe. Berthod e Diarra deram lugar a Frau e Nilmar. Dois atacantes há mais no time, que passou a pressionar .
O abafa em cima do time anfitrião só surtiu efeito no fim do jogo, quando a vitória dos Verdes estava desenhada. E por uma daquelas coincidências que só o futebol provoca, foi exatamente uma das lendas do clube que fez o sonho ruir. Estamos falando de Jérémie Janot.
O goleiro era cria do Saint-Étienne e acumulava jogos no time principal desde a temporada 1996/97. Se havia alguém incontestável naquele irregular time era ele. Só que um erro de Janot custou caro naquela noite. Aos 42, Sidney Govou foi lançado pela direita. Provavelmente, ele conseguiria dominar a bola, mas ainda não finalizaria. A cobertura da defesa estava próxima e o camisa 14 do OL não tinha lá tanto ângulo para finalizar. Janot saiu da meta como um caminhão sem freio. Não viu a bola por perto, somente as pernas do adversário. Pênalti indiscutível, que foi assinalado por Pascal Garibian.
Foto: Le Progrès
Foto: Le Progrès
Foto: Le Progrès
Concorrendo ao posto de vilão, Janot teve um segundo de heroísmo. Ele defendeu o pênalti cobrado por Juninho, mas levou azar. A bola caiu de volta nos pés do camisa 8, que empurrou para as redes e saiu correndo para a sua torcida girando a camisa no ar. O goleiro, num ato intempestivo, deu uma espécie de voadora na trave, lamentando o erro, mas também o azar na jogada.
Mas não parou por aí.
Nos acréscimos, quando o Lyon administrava o 2 a 2 – que já era um resultado e tanto, mediante as circunstâncias – veio o golpe fatal. Nilmar recebeu na entrada da área e tentou simular uma falta. O árbitro não caiu na dele e deixou a jogada seguir. Aparentemente, a defesa do ASSE deu o lance como encerrado, quando, de repente, Govou apareceu com a bola na grande área a ponto de finalizar. Ele venceu Hognon e mandou a bola para o fundo das redes, determinando uma improvável virada aos tricampeões.
Hognon, que foi vencido por Govou no gol, ainda quase empatou nos acréscimos. Após falta cobrada na área, o zagueiro surgiu livre entre os defensores do Lyon e finalizou de primeira. O chute foi forte demais e saiu sobre a meta de Coupet, que pode respirar aliviado, principalmente quando o árbitro apitou pela última vez, sacramentando aquela que seria uma das mais marcantes partidas do derby em toda a sua história.
Foto: Martin Bureau / AFP via Getty Images – OneFootball
Foto: Martin Bureau / AFP via Getty Images – OneFootball
Foto: Martin Bureau / AFP via Getty Images – OneFootball
Para o Lyon, nem é preciso contar como a história seguiu. O time de Paul Le Guen continuou vencendo, encantando e agradando. Só perdeu a primeira partida na 22ª rodada e terminou a temporada com o tetracampeonato. O Saint-Étienne também não pode se queixar. Sentiu o baque da derrota, é verdade. Passou mais três jogos sem vencer, mas reagiu no decorrer da competição e terminou o ano num honroso 6º lugar.
Entretanto, aquele marcante 3 a 2 foi uma espécie de ruptura na história do clássico. O Lyon, antes Patinho Feio da brincadeira, já não era mais tão bobo quanto antes. Muito pelo contrário, passou a dominar o derby. Não importa se era no Geoffroy-Guichard ou no Gerland, na Liga ou na Copa. A primeira década dos anos 2000 se passou e o OL simplesmente não soube o que era perder do seu maior rival. O duelo passou a ter um dono a partir de então e ele respondia por Olympique Lyonnais.