Última Divisão
·22 de abril de 2025
Chamam-me ‘El Charro’

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·22 de abril de 2025
Por Lúcio Humberto Saretta
Hoje quero falar um pouco sobre o futebol argentino. Trata-se de uma escola que possui luz própria, um estilo guerreiro e passional de jogar. Contundência e picardia, cadência e agressividade.
Um de seus grandes expoentes enquanto atleta, foi sem dúvida José Manuel Moreno. Filho de dona Malvina e de seu José, irmão de Escolástica, Íris e Estrella, na juventude Moreno era torcedor do Boca Juniors, clube onde tenta a sorte no ano de 1932. O pequeno José morava em uma casa a uma quadra da Bombonera e o seu quarto tinha as paredes cobertas com pôsteres de seus ídolos, entre eles Varallo, Cherro e Domingos da Guia.
Ao ser rechaçado pelo clube azul e ouro, o rapaz migra então para o rival River Plate. No ano de 1935, o clube milionário faria um amistoso contra o Botafogo no Brasil. A presença de Moreno na peleja é solicitada por Bernabé “La Fiera” Ferreyra, o craque do time. Moreno faz assim, a sua estreia contra o quadro carioca.
Sobre Bernabé, reza a lenda que, certa vez, após um jogo do River, Carlos Gardel decide visitar o vestiário. Conhecido como “El Zorzal”, um pequeno pássaro negro e cantante, Gardel era uma espécie de semideus, sendo seus tangos apreciados pela população mais pobre que frequentava os cafés de Buenos Aires. Ao se aproximar de Bernabé, enquanto este trocava de roupa, Gardel pergunta “quer dizer que você é que é a fera?”, ao que Bernabé responde “não, maestro, a fera é você, quando canta”. Nessa época o ataque do River era Peucelle, Cesarini, Ferreyra, Moreno e Pedernera.
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Os anos passam e Bernabé deixa o time. Novos valores vão surgindo das categorias de base. Entre eles está Angel “El Feo” Labruna. Começa a nascer o ataque que é considerado até hoje o mais expressivo da história do futebol argentino: Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Loustau. Eram os tempos de “La Maquina”, um esquadrão inigualável, daqueles que só se formam de cem em cem anos. Um amálgama perfeito de talentos e que tinha em Moreno um baluarte fenomenal. Possuidor de um físico avantajado, Moreno reunia em seu repertório de jogadas desde passes precisos até gols fulminantes, exibindo uma clássica visão de jogo e luxos sem limites.
No ano de 1944, Moreno transfere-se para o España do México, sagrando-se campeão também em terras astecas. Ao retornar ganha o apelido de “El Charro”, roupa típica daquele país. Novamente pelo River, vence o campeonato de 1947 atuando ao lado de Di Stéfano. Um ano depois, após uma greve dos jogadores, coisa que era comum no país vizinho, Moreno vai para o Universidad Católica do Chile.
Em 1950 tem uma passagem apagada pelo Boca, clube que o havia desprezado no início da carreira. Rodou ainda pelo Defensor de Montevidéu e Ferro Carril, antes de migrar para o Independiente de Medellín, onde jogou até os 44 anos de idade. Apesar de ter sido um atleta longevo, Moreno morreu em 1978, com apenas 62 anos.
Grande dentro das quatro linhas, “El Charro” era também um galã fora delas. Figura imponente, exímio dançarino de tangos, foi casado com a atriz Pola Alonso. Boêmio, não dispensava aventuras noturnas em ambientes enfumaçados “a media luz”. Felix Loustau, seu companheiro de River e seleção, conta que certa vez no Equador, Moreno saiu para a gandaia com Leo Marini, um famoso cantor de boleros, voltando para a concentração às dez horas da manhã do dia seguinte. Apesar dos protestos do técnico, foi escalado para o jogo com o Paraguai, sendo o melhor em campo.
Pela seleção Argentina foi sempre um pesadelo para o Brasil. Naquela época, os dois países disputavam esporadicamente a Copa Roca, um duelo específico entre Brasil e Argentina. Em 1939, no estádio de São Januário, então o maior do Brasil, “El Charro” fez misérias e comandou seu quadro na vitória de 5 a 1 contra a nossa seleção.
O jornalista Luiz Mendes narra um episódio altamente ilustrativo sobre esse tremendo jogador. Estava ele cobrindo uma Copa América realizada em Córdoba, já na década de 1980. Ao utilizar-se de um táxi, logo começa a falar de futebol com o motorista. Este, então, diz que para ele o maior jogador brasileiro de todos os tempos não fora Pelé, mas sim, Leônidas da Silva. O comentarista gaúcho do alto de sua riquíssima vivência emenda que, para ele, o maior jogador argentino de todos os tempos não fora Maradona, mas sim, Moreno.
O taxista, feliz por ouvir opinião tão sábia, acende um cigarro, enquanto espera que troque o sinal.
Lúcio Humberto Saretta é escritor, autor dos livros O beijo na lona, Crônicas Douradas: dramas, conquistas e mitos, O louco no espelho, e Lições da barbearia: crônica de gols, cestas e nocautes