
Calciopédia
·15 de outubro de 2025
Em 1970, o Ajax de Johan Cruyff goleou – e congelou – o Napoli na antiga Copa das Feiras

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·15 de outubro de 2025
Na transição entre as décadas de 1960 e 1970, o Ajax de Rinus Michels e Johan Cruyff começava a escrever sua história como potência que dominaria a Europa. Vice-campeão continental em 1969, com derrota para o Milan na decisão, já deixava entrever o futebol total que mudaria o jogo para sempre. Em seu percurso de amadurecimento, o time de Amsterdã participou da Copa das Feiras e puniu o Napoli, que vivia os primeiros meses da gestão de Corrado Ferlaino e só colheria os frutos da mudança de comando anos mais tarde. A equipe italiana, sem os veteranos José Altafini e Kurt Hamrin em plena forma, sucumbiu diante de um adversário que simbolizava o futuro do esporte num duelo que começou no clima ameno do Mediterrâneo e terminou marcado pelo rigor do inverno holandês, com direito a adiamento do confronto de volta por nevasca e intensa neblina.
Em dezembro de 1968, o Napoli viu Antonio Corcione, que ascendeu à presidência pouquíssimos meses antes, morrer de forma repentina. Em janeiro de 1969, com a bênção de Achille Lauro, que detinha um terço das ações, Ferlaino – que já era diretor azzurro – adquiriu as cotas do falecido e se tornou novo o novo cartola de referência do clube. Na poltrona decisória, teve que administrar situações complicadas de cara, como a sucessão de eventos que culminaram em sua posse deixava antever.
Em janeiro de 1970, uma agasalhada delegação do Napoli – com Hamrin ao centro – desembarcou em Amsterdã para encontrar o Ajax (Anefo)
Em sua primeira sessão de mercado na condição de presidente, Ferlaino conduziu a dolorosa despedida do brasileiro Cané, ídolo popular, que rumou ao Bari (voltaria três anos depois) e também se desfez do veterano Harald Nielsen e do promissor Claudio Sala. Em contrapartida, foi buscar um nome de peso do futebol europeu: o sueco Hamrin, maior artilheiro da história da Fiorentina, vice-campeão mundial em 1958 e que havia acabado de chegar ao topo da Europa pelo Milan, graças à vitória na final contra o Ajax. O atacante chegava já veterano, aos 35 anos, mas com currículo e aura capazes de inspirar, juntamente ao também multivitorioso e goleador Altafini, um vestiário sem tantas estrelas.
O incipiente Napoli de Ferlaino era comandado por Giuseppe Chiappella, que brilhara como jogador e técnico na Fiorentina, tendo sido colega e comandante de Hamrin. O treinador lombardo apostava na mescla entre experiência e juventude. Ao lado de referências como Antonio Juliano, Dino Zoff, Ottavio Bianchi e o já citado Altafini, emergiam promessas como Giovanni Improta, Vincenzo Montefusco e Pierpaolo Manservisi – este último, de 25 anos, era o mais velho dos garotos citados e marcaria seu nome no confronto.
O time partenopeo vinha de um sétimo lugar na Serie A e entrava na Copa das Feiras para tentar angariar prestígio internacional – naquele momento, o clube tinha apenas os títulos de uma Coppa Italia, uma Copa dos Alpes, uma Serie B e de uma divisão do Italiano pós-Segunda Guerra Mundial. Disputada entre 1955 e 1971, a competição continental foi o embrião da Copa Uefa (atual Liga Europa) e foi criada originalmente para promover as cidades com feiras internacionais de comércio. Com essa motivação, o torneio passou a reunir clubes de médio e grande porte e, posteriormente, foi expandido para aceitar aqueles que não haviam se classificado para as principais disputas europeias – a Copa dos Campeões e a Recopa, restrita aos ganhadores de títulos das ligas e dos mata-mata nacionais, respectivamente.
Nada feito: por baixa visibilidade devido a um nevoeiro, o jogo de volta entre Ajax e Napoli foi adiado (Anefo)
O início de temporada do Napoli, porém, era vacilante: após 11 rodadas da Serie A, ocupava o 13º lugar, com apenas três vitórias, e flertava com a zona de rebaixamento. Na Coppa Italia, os azzurri conseguiram ser eliminados na fase inicial, num grupo com Casertana, Foggia e Reggina. Hamrin, entre lesões e declínio físico, pouco jogava. O consolo estava no torneio europeu, onde os partenopei superaram o Metz por um placar agregado de 3 a 2, com um empate fora e vitória em casa, garantida por um pênalti convertido por Improta. Nos 16-avos de final, passaram pelo Stuttgart com novo resultado magro: 0 a 0 na Alemanha e 1 a 0 no San Paolo, graças a gol de Virginio Canzi.
O Ajax, portanto, era favoritíssimo nas oitavas da Copa das Feiras. A equipe de Michels já vinha provando o seu valor fora das fronteiras nacionais e não enfrentou tantos problemas nas fases anteriores, nas quais superou o alemão Hannover 96 (4 a 2 no agregado) e o polonês Ruch Chorzów (9 a 1). Também dominava o cenário dos Países Baixos em 1969-70 – mais tarde, faria a dobradinha, com taças da Eredivisie e da copa local. Para o Napoli, o duelo tinha caráter híbrido: era simultaneamente vitrine econômica e campo de experimentação esportiva, além de lhe permitir tentar surpreender o continente. Caso tivesse sucesso, protagonizaria a afirmação de um time do sul da Itália numa época em que brilhavam quase exclusivamente os gigantes do norte.
O duelo de ida aconteceria no dia 10 de dezembro de 1969, no San Paolo. O Ajax desembarcou na Itália sem seus principais intérpretes: Cruyff e Piet Keizer. A ausência do craque era importante, mas os holandeses tinham um conjunto fortíssimo e uma ideia de jogo trabalhada, de modo que o desafio dos azzurri era imenso. A equipe de Michels unia disciplina, fluidez e uma ideia quase espiritual de sinergia coletiva, já começando a esboçar os conceitos do totaalvoetbal – que mudaria o esporte para sempre. Cada jogador era peça móvel de uma engrenagem viva, com movimentações constantes e pouco usuais nas fases ofensiva e defensiva. O Napoli teria diante de si uma obra filosófica disfarçada de time.
Ausente no jogo de ida, na Itália, Cruyff disputou a volta e fez a defesa do Napoli sofrer (Anefo)
Contando com o que tinha de melhor, o Napoli superou o abismo em relação ao Ajax, que, apesar de não ter à disposição Cruyff e Keizer, ainda podia confiar em Wim Suurbier, Barry Hulsoff e Gerrie Mühren, além do futuro azzurro Ruud Krol. Aos 37 minutos, então, a surpresa: empurrado por sua fanática torcida, o time campano chegou ao gol. Mario Zurlini cruza na medida para Altafini; o brasileiro ajeitou e serviu Manservisi, que completou de cabeça e estufou a rede. De físico esguio e rosto inocente, ao ponto de ser apelidado como “passarinho”, o garoto se impunha sobre gigantes.
O Ajax tentou reagir com o ímpeto dos que se sabem superiores: Krol avançava com frequência, o centroavante Dick Van Dijk rondava a área, mas Bianchi, Juliano e Montefusco davam sustentação heroica ao sistema defensivo napolitano, composto por Zurlini, Dino Panzanato, Luciano Monticolo e Luigi Pogliana, que resistiam como gladiadores diante de leões holandeses. O apito final selou um 1 a 0 histórico, porém o feito logo se diluiu no noticiário. Dois dias depois, a Itália mergulhava no luto da tragédia de Piazza Fontana, que deixou 17 mortos e 88 feridos em Milão. O atentado, no escopo da tática terrorista de estado chamada “estratégia de tensão”, é considerado o marco inaugural dos anos de chumbo italianos.
O futebol, contudo, não parou. A Serie A seguiu, e, em 14 de dezembro, o Napoli viajou até a Emília-Romanha para bater o Bologna por 2 a 1, com doppietta de Altafini. O time se preparava para o retorno da batalha europeia, numa Amsterdã coberta pela neve. A partida estava marcada para 7 de janeiro e a delegação italiana chegou à capital dos Países Baixos dois dias antes, muito bem agasalhada e elegante, trajando belos e negros sobretudos – Juliano, por sua vez, se protegia com um chapéu de pele. Jaap van Praag, histórico presidente do Ajax, fez questão de ir ao aeroporto de Schiphol receber os adversários.
Em lance digno de pastelão, Swart abriu o placar para o Ajax diante de um Zoff vendido (Anefo)
O Napoli não contaria com Altafini, que se lesionou por volta da virada do ano e nem viajou para a Holanda. O sueco Hamrin, acostumado com o clima inclemente do norte da Europa, por sua vez, estava disponível. Entretanto, quando caiu a noite em 7 de janeiro, um denso nevoeiro se abateu sobre Amsterdã e seu estádio Olímpico, que já tinha o gramado coberto por alguns centímetros de neve. O árbitro Rudolf Glöckner fez a inspeção da situação, pouco enxergou devido à neblina e comunicou às delegações dos dois times que o jogo estava adiado por falta de visibilidade e condições climáticas adversas.
O segundo ato, então, seria disputado em 21 de janeiro de 1970. Para o azar do Napoli, Cruyff e Keizer voltavam ao time do Ajax, Altafini ainda não havia se recuperado e Hamrin tornara a sofrer com problemas físicos – ao longo de 1969-79, o sueco fez apenas seis jogos, todos entre dezembro e janeiro. Nada disso cheirava bem para os azzurri.
Ainda fazia muito frio e todos os atletas do Napoli foram a campo com mangas longas e malhas térmicas por baixo dos calções e meiões – alguns dos jogadores do Ajax faziam o mesmo. O time italiano manteve o espírito combativo da ida, mas aos 31 minutos, Nico Rijnders levantou bola na área, a zaga azzurra não cortou e Giacomo Vianello não viu a infiltração de Sjaak Swart: num lance meio grotesco, chutou o vazio, enquanto o neerlandês só escorava para a rede, vencendo Zoff.
O Ajax bem que tentou no tempo normal, mas o Napoli segurou a derrota magra e o jogo foi para a prorrogação (Anefo)
O jogo foi com esse placar para o descanso e o show do intervalo teve uma apresentação bem típica da época. Uma encenação do espetáculo musical Hair, que marcou o fim da década de 1960 com seu pano de fundo contracultural, acontecia num teatro próximo ao Olímpico e os atores que participavam da peça foram convidados a dar uma palhinha no gramado. Não foi o combustível necessário para alterar o placar: o 1 a 0 persistiu até o fim do tempo regulamentar, levando o confronto à prorrogação.
Foi então que surgiu um personagem secundário, destinado a um lampejo único: Ruud Suurendonk, atacante reserva que entrou no lugar de Van Dijk e vestia a camisa 14 – a mesma que, pouco depois, Cruyff tornaria lendária; naquele jogo, a lenda neerlandesa vestia a 9. O jogador era pupilo de Michels, que o treinara no JOS Watergraafsmeer, e foi levado ao Ajax, embora pouco atuasse. E, após aquela noite, voltaria ao semianonimato.
Aos 109 minutos, Cruyff conduziu a bola do meio de campo, deixando um marcador para trás, emendou uma rápida triangulação e deixou Suurendonk na cara do gol – ele bateu forte de canhota e não deu chances a Zoff. Em sequência fulminante, o centroavante marcou outras duas vezes até os 115, aproveitando a desatenção de um Napoli grogue. Na casa dos 110, os azzurri se defenderam mal e, no rebote do arqueiro em chute de Mühren, o camisa 14 só rebateu para a rede; depois, Suurbier cruzou na medida, no desenrolar de um escanteio, e atacante escorou para o barbante.
Os azzurri desabaram em poucos minutos e terminaram eliminados da Copa das Feiras com uma goleada (Anefo)
Os três dos quatro únicos gols de Suurendonk por competições europeias em toda a sua carreira derrubaram o Napoli e apagaram o milagre do San Paolo. A vitória por 4 a 0 classificou o Ajax, que seria eliminado nas semifinais pelo Arsenal, que ficou com a taça, mas estava a um passo da glória. A partir do ano seguinte, o time holandês inauguraria a hegemonia continental ao faturar três Copas dos Campeões consecutivas, com Cruyff coroado como imperador do futebol total – e carrasco de Inter e Juventus, batidas em 1972 e 1973, respectivamente.
O Napoli, eliminado na Copa das Feiras, reagiria na Serie A e a concluiria em sexto, enquanto o Cagliari de Luigi Riva conquistava o primeiro scudetto de sua história. Na Campânia, a felicidade demoraria um pouco a reinar, mas a gestão de Ferlaino semeava o germe para vitórias futuras. Após bons resultados em diversas competições, o time que teve a digital do brasileiro Luís Vinício e que ainda contava com Pogliana e Juliano, remanescentes da derrota para o Ajax, levantaria a Coppa Italia em 1976.
Napoli: Zoff; Panzanato, Monticolo, Pogliana; Zuclini; Juliano, Bianchi, Montefusco; Hamrin (Bosdaves), Altafini, Manservisi. Técnico: Giuseppe Chiappella. Ajax: Bals; Suurbier, Hulshoff, Vasovic, Krol; Muller, Rijnders; Swart, Mühren, Söndergaard; Van Dijk. Técnico: Rinus Michels. Gol: Manservisi (35′) Árbitro: Anton Bucheli (Suíça) Local e data: estádio San Paolo, Nápoles (Itália), em 10 de dezembro de 1969
Ajax: Bals; Suurbier, Hulshoff, Vasovic, Krol; Rijnders, Mühren; Swart, Cruyff, Keizer (Muller); Van Dijk (Suurendonk). Técnico: Rinus Michels. Napoli: Zoff; Nardin, Panzanato, Pogliana; Vianello (Improta); Juliano, Monticolo, Bianchi; Bosdaves (Canzi), Manservisi, Barison. Técnico: Giuseppe Chiappella. Gols: Swart (31′), Suurendonk (109′), Suurendonk (110′) e Suurendonk (115′) Árbitro: Rudolf Glöckner (Alemanha Ocidental) Local e data: estádio Olímpico, Amsterdã (Países Baixos), em 21 de janeiro de 1970