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·20 de outubro de 2025

Em 1971, uma latinha mudou os rumos de duelo entre Inter e Mönchengladbach

Imagem do artigo:Em 1971, uma latinha mudou os rumos de duelo entre Inter e Mönchengladbach

Bökelbergstadion, Mönchengladbach, oeste da Alemanha. O dia era 20 de outubro de 1971, e o frio começava a se tornar cortante sobre a Renânia do Norte. No calendário da Copa dos Campeões, aquele seria apenas mais um confronto das oitavas de final, mas o destino se encarregaria de transformá-lo em um dos episódios mais controversos da história do torneio. Borussia Mönchengladbach e Inter, representantes de dois países que haviam definido o futebol europeu da década anterior, mediriam forças em um duelo entre duas das gerações mais vencedoras de ambos os times. O que parecia só um grande jogo, contudo, tornaria-se um caso jurídico, um símbolo de como as fronteiras entre o campo e os bastidores podiam se dissolver por completo e levar à anulação de um resultado histórico. Tudo por causa de uma latinha, que fez a tensão transbordar.

O Borussia Mönchengladbach vivia o auge de sua ascensão sob o comando de Hennes Weisweiler desde 1964. Bicampeão alemão em 1970 e 1971, o clube tinha moldado um futebol de alta rotação, jovem e ofensivo, que antecipava muito do que a Alemanha Ocidental mostraria ao mundo nos anos seguintes. O elenco era uma síntese daquela geração dourada: Berti Vogts, Günter Netzer, Jupp Heynckes, Herbert Wimmer, Rainer Bonhof e Wolfgang Kleff integrariam o elenco germânico que chegaria ao topo do mundo em 1974; Klaus-Dieter Sieloff jogou em 1970, juntamente a Vogts. Todos respiravam o mesmo ideal de jogo: marcação agressiva, passes verticais e transições fulminantes. O Bökelbergstadion, acanhado e fervilhante, era o caldeirão dessa revolução tática que colocava o Gladbach em contraste direto com o poder mais estabelecido do país, o Bayern de Munique.


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A calmaria antes da tempestade: os capitães Netzer e Mazzola se cumprimentam no gramado do Bökelbergstadion (imago/WEREK)

Do outro lado, a Beneamata já não era a mesma que dominara a Europa na metade dos anos 1960, sob Helenio Herrera. Os tempos de Grande Inter haviam passado, mas o elenco tinha vários remanescentes do timaço, que carregavam o peso das conquistas na década de 1960. Gianni Invernizzi, técnico desde 1970, tentava resgatar algo daquela equipe, ajustando o sistema defensivo herdado do catenaccio e apostando na experiência de figuras como Giacinto Facchetti, Tarcisio Burgnich, Mario Corso, Sandro Mazzola e Jair da Costa, que fizeram a diferença na gestão do franco-argentino, bem como em pratas da casa que emergiram ou ganharam espaço depois da saída de HH – Ivano Bordon, Mauro Bellugi, Gabriele Oriali e Roberto Boninsegna.

Ex-volante da Beneamata, Invernizzi, que fora contratado no começo da já iniciada temporada 1970-71 para substituir Heriberto Herrera, quase homônimo do ídolo nerazzurro, entregou resultados imediatos: a Inter foi campeã italiana, encerrando jejum de quase cinco anos sem troféus, e voltou a disputar a principal competição interclubes da Europa, o que não ocorria desde 1967. Em 1971-72, o treinador buscaria a afirmação em nível continental, tentando levar novamente a Beneamata às glórias europeias – afinal, os nerazzurri fizeram três finais de Copa dos Campeões na década de 1960, ganhando dois títulos.

A participação da Inter na Copa dos Campeões começou contra o AEK Atenas, que foi superado por um placar agregado de 6 a 4 – o 4 a 1 na ida e o andamento do jogo de volta provocou um relaxamento na equipe, que acabaria sofrendo uma irrelevante derrota por 3 a 2 na Grécia. O sorteio das oitavas de final, contudo, não foi favorável: os nerazzurri enfrentariam o Borussia Mönchengladbach, que atropelou o já extinto Cork Hibernians, da Irlanda, com 7 a 1 na eliminatória. Um presságio?

O Mönchengladbach saiu na frente bem cedo, num lance em que Heynckes levou a melhor sobre a defesa da Inter (Tomikoshi)

Seria mais uma disputa quente entre alemães e italianos dentro de campo, um ano e poucos meses depois do emblemático “Jogo do Século”, na semifinal da Copa do Mundo de 1970, com vários atletas envolvidos nas duas ocasiões, mesmo sem necessariamente terem entrado em campo nas partidas. Pelo lado do Gladbach, como falamos, Vogts e Sieloff integravam o plantel da Alemanha Ocidental; já na Inter, Burgnich, Facchetti, Mazzola, Boninsegna, Mario Bertini e Lido Vieri haviam sido convocados pela Itália.

A delegação da Inter decidiu se hospedar na vizinha Colônia e só foi conhecer a pequena Mönchengladbach e o acanhado Bökelbergstadion na véspera do confronto de ida. Uma decisão que não pareceu acertada, diante do inferno que os nerazzurri viveriam desde cedo, num caldeirão que fervia com a presença de 27,5 mil torcedores debruçados sobre o gramado, pressionando os visitantes.

O Borussia Mönchengladbach, impelido pela força da torcida, partiu para cima desde o primeiro minuto, e a intensidade alemã logo colheu frutos. Aos 7, Heynckes, oportunista e letal, deu um drible desconcertante em Mario Giubertoni e, batendo na saída de Vieri, abriu o placar para os anfitriões. O gol incendiou o estádio e empurrou os italianos para a defesa, mas a resposta veio rapidamente, na bola parada: aos 19, Boninsegna empatou numa cobrança de falta rasteira. Por instantes, a Inter parecia recuperar o controle emocional da partida.

Confusão instaurada: Boninsegna caiu no gramado após ser atingido por uma latinha e o jogo foi paralisado na Alemanha Ocidental (imago/WEREK)

Mas o equilíbrio durou pouco. Praticamente após a retomada do duelo, Ulrik le Fevre, ponta dinamarquês do Gladbach, recebeu cruzamento livre e, de cabeça, devolveu a vantagem aos alemães. O jogo, já quente, passou a ser travado em ritmo de guerra. Foi então que, pouco antes da meia hora jogada, ocorreu o lance que marcaria para sempre aquele confronto. Em meio à agitação à beira do campo, um objeto foi arremessado da arquibancada e atingiu Boninsegna, que se preparava para cobrar um arremesso lateral.

Bonimba caiu atordoado no gramado e os nerazzurri, contidos com dificuldade pelo técnico Invernizzi, cercaram o árbitro Jef Dorpmans, pedindo a suspensão da partida. Os alemães, por sua vez, reagiram acusando os italianos de encenação – o que persiste, depois de décadas. Várias rodinhas de entreveros se formaram no meio do campo e o jogo foi paralisado por alguns minutos.

Enquanto a confusão reinava, o objeto – que parecia uma lata de Coca-Cola – desapareceu, aparentemente escondido pelos alemães. Mazzola, capitão interista, então notou, no setor de onde o objeto havia sido lançado, dois torcedores italianos, um dos quais bebia justamente uma latinha do mesmo refrigerante, cuja marca, ironicamente, estava presente em diversos letreiros publicitários à beira do gramado. Sandrino correu até eles, pegou o recipiente já vazio e o entregou ao árbitro, alegando que aquele era o artefato que havia atingido Bonimba.

Os jogadores da Inter tentaram convencer a arbitragem a encerrar o jogo após o desmaio de Bonimba (imago)

Invernizzi substituiu Boninsegna, que até queria continuar jogando após despertar do desmaio que teve . Considerado incapaz de continuar pelo médico da Inter, saiu de maca do gramado – posteriormente, foi constatada no centroavante uma forte contusão parietal em decorrência do golpe sofrido. Com a entrada de Gian Piero Ghio no lugar de Bonimba, o árbitro então ordenou a retomada da partida. A bola rolava, mas o jogo já estava contaminado.

Na prática, a partida de ida das oitavas da Copa dos Campeões passou a ser jogada apenas pelo Mönchengladbach: os alemães marcaram outros cinco gols nos 60 minutos seguintes, sendo três ainda no primeiro tempo, aproveitando-se da apatia da Inter. Criticados pelo comportamento após o jogo, os nerazzurri se justificaram alegando que o desempenho ruim se devia ao abalo psicológico causado pela saída de Boninsegna e à convicção de que venceriam por W.O. em razão do incidente.

Naquela primeira etapa, Le Fevre marcaria de cabeça, aos 34 minutos, Netzer anotou numa cobrança de falta de longa distância e Heynckes, se antecipando à zaga após cruzamento rasteiro, fez o quinto. Vieri, criticado pela falta de reatividade nos tentos, foi substituído por Bordon, de 20 anos, na volta para o segundo tempo. Não fez muita diferença, já que a diferença de energia e convicção entre as equipes seguiu abissal: a Beneamata, cabisbaixa na saída para o intervalo, não mudou sua postura, ao passo que o Mönchengladbach percebeu que poderia fazer história.

Atingido por uma lata de Coca-Cola, o atacante Boninsegna foi substituído e teve que deixar o gramado de maca (imago/Horstmüller)

Aos 52 minutos, Netzer voltou a marcar, desta vez com um lindo toque por cobertura que surpreendeu Bordon. Perto do fim da partida, a lesão de Jair da Costa deixou a Inter, que já havia queimado suas duas substituições, com dez homens. Depois, um gol de Sieloff, em pênalti duvidoso, selou o definitivo 7 a 1. Na casa dos 85, Corso, após protestar inutilmente contra a marcação da penalidade, teria desferido um chute no árbitro e foi expulso. Mariolino sempre se declarou inocente, e algumas fontes atribuem o gesto antidesportivo a Ghio – mas o fato é que o experiente meia foi para o chuveiro mais cedo e os nerazzurri terminaram o massacre com dois jogadores a menos em campo.

Com o fim da partida, e devido à ausência de transmissão da partida, começaram a surgir diferentes versões sobre o ocorrido – ou seja, aquela noite não terminaria no campo. Esses relatos, evidentemente, raramente coincidem. Do lado alemão, a leitura predominante é de que a lata arremessada das arquibancadas estava vazia e amassada, que o impacto em Boninsegna fora leve e que toda a encenação teria sido montada por dirigentes e médicos da Inter para forçar a vitória nos tribunais. Já entre os italianos, o relato mais consistente foi o do importante jornalista Alfeo Biagi, testemunha ocular do ocorrido. O cronista afirmou ter visto o objeto passar por cima de sua cabeça e da do colega Oddone Nordio, do diário Resto del Carlino, antes de atingir violentamente o atacante nerazzurro. O repórter conta que o líquido escuro, que inicialmente pensou ser cerveja escura, e não Coca-Cola, chegou a manchar a capa de chuva que vestia.

Os jogadores do Mönchengladbach afirmaram que o médico da Inter tentou segurar Boninsegna no chão, impedindo-o de se levantar – ou seja, tentando forçar uma encenação e a punição dos germânicos. O atacante, por sua vez, sempre rejeitou a tese da farsa. Disse repetidas vezes que desmaiou após o golpe e que, ao recobrar os sentidos, foi obrigado pelo responsável sanitário nerazzurro a abandonar o campo para receber atendimento, embora desejasse seguir jogando. Mazzola confirmou essa versão e acrescentou que tentara convencer os adversários a reduzir o ímpeto, imaginando que a partida seria anulada. Ambos concordaram num ponto: o 7 a 1 jamais teria ocorrido em condições normais de disputa, ainda que reconhecessem a força do elenco borussiano.

Apesar de confiarem numa solução jurídica, os interistas deixaram o campo cabisbaixos no intervalo; mais tarde, Corso seria expulso por agressão (imago)

O árbitro Dorpmans também contribuiu para o enredo com declarações contraditórias. Logo após o jogo, disse ao jornal La Stampa que, à luz de precedentes semelhantes, não acreditava que a Inter conseguiria a vitória por W.O., mas descreveu o incidente como “deplorável” e adiantou que mencionaria em seu relatório a influência direta do episódio no resultado.

Décadas depois, em 2009, ao rememorar o caso em entrevista à imprensa alemã, o apitador neerlandês mudou o tom: disse não ter visto o momento exato do arremesso e afirmou que os italianos tentaram tirar proveito da situação pedindo insistentemente a suspensão da partida. Admitiu, ainda, que ficou surpreso com a decisão da Uefa de ordenar a repetição do confronto, uma vez que tanto ele quanto o delegado da entidade, o escocês Matt Busby, que acumulava à época o cargo de diretor do Manchester United, haviam concluído que o incidente não alterara o desfecho do jogo. Entretanto, isso diverge de informações da época: os dois teriam sido informados pela polícia da Alemanha Ocidental que o adiamento da peleja poderia provocar caos e violência, o que teria pesado para que a partida continuasse.

Sim, como adiantamos, a Uefa anulou a partida. Afinal, a Inter saiu de Mönchengladbach revoltada, se sentindo lesada e buscou os meios legais para reparar o dano que alegava ter sofrido. O vice-presidente Peppino Prisco, advogado de formação e um dos personagens mais influentes da história nerazzurra, já arquitetava a contestação formal do resultado. O clube milanês alegou que a agressão sofrida por seu jogador comprometera a integridade da partida. A Uefa, por sua vez, recebeu a queixa com cautela, pois o caso não tinha precedentes em torneios europeus.

Na volta que virou ida, San Siro ferveu e Boninsegna, já recuperado, fez um dos gols dos nerazzurri (Arquivo/Inter)

No recurso apresentado ao departamento jurídico da Uefa, Prisco argumentou que a lata lançada pela torcida alemã havia criado uma situação de insegurança que afetou diretamente o rendimento da Inter: o cartola advogava pela vitória por 3 a 0 para os italianos. Os dirigentes do Gladbach insistiram que o objeto atingira Boninsegna apenas de raspão e que o atacante exagerara a dor para provocar a suspensão da partida. A comissão disciplinar da entidade reuniu-se em Genebra para ouvir as partes. O depoimento do cartola nerazzurro, eloquente e firme, convenceu os representantes da entidade de que o jogo deveria ser anulado, subvertendo o entendimento da época – anteriormente, o regulamento previa multas e perda de mando de campo. O Gladbach também foi multado em 10 mil francos suíços.

A decisão, anunciada poucos dias depois, caiu como uma bomba na Alemanha Ocidental. A goleada por 7 a 1 foi oficialmente invalidada. O placar, que seria uma das maiores vitórias da história do Borussia Mönchengladbach em sua história, simplesmente deixou de existir. A entidade determinou que a partida fosse repetida no campo neutro de Berna, capital da Suíça – o que indignou a imprensa alemã e transformou Prisco em vilão na cidade alemã. Autoridades germânicas precisaram adotar medidas de proteção às comunidades italiana e helvética, que foram alvo de ataques e manifestações de cunho xenofóbico nas semanas seguintes. No lado nerazzurro de Milão, por outro lado, a medida foi recebida como um triunfo da astúcia e do direito.

O desenrolar do caso teve contornos ainda mais inusitados. Por questões logísticas, a Uefa decidiu que o jogo de volta, em Milão, não teria data alterada e seguiria agendado para 3 de novembro – antes do julgamento de quaisquer recursos ao comitê disciplinar e da confirmação da sentença. Na prática, havia uma inversão de mando, e o San Siro poderia ser palco, na verdade, da partida de ida.

A Beneamata venceu por 4 a 2 em casa e aguardou a decisão da Uefa sobre a partida realizada em solo alemão-ocidental (Arquivo/Inter)

Enquanto o imbróglio tramitava no departamento jurídico da Uefa, o estádio da capital da Lombardia recebeu uma Inter furiosa e disposta a lavar a honra. Diante de um estádio cheio, com cerca de 57,5 mil presentes, os nerazzurri venceram por 4 a 2, em uma atuação marcada pela entrega e pela reconstrução do orgulho ferido. Anos mais tarde, o lendário Facchetti contou à Gazzetta dello Sport que os jogadores sentiam a necessidade de dar uma resposta à torcida e a si próprios, pois a goleada sofrida na Alemanha Ocidental não refletia a força do time.

A Inter abriria o placar logo aos 10 minutos, depois que a zaga do Mönchengladbach afastou mal uma cobrança de falta. Bellugi amorteceu a bola na intermediária e soltou um balaço cheio de efeito, que surpreendeu Kleff e morreu na rede dos Potros. Em seguida, Jair da Costa recebeu um lançamento, Hartwig Bleidick falhou feio ao tentar cortá-lo e o brasileiro ficou na cara do gol, mas mandou por cima. Não fez tanta falta, já que, aos 13, o defensor adversário errou novamente, num lance em que se confundiu com Sieloff: o cruzamento de Mario Frustalupi pererecou na área e Boninsegna, plenamente recuperado do arremesso de latinha de Coca-Cola, finalizou de canhota para ampliar e se vingar dos germânicos.

O Gladbach tratava o jogo como uma batalha e enfileirava entradas duras, com Jair sendo o mais caçado. Aos 38 minutos, os alemães acabariam fazendo valer essa imposição física e diminuíram: Netzer bateu escanteio e o dinamarquês Le Fevre subiu sozinho para marcar. A partida seguiu agitada, mas com poucas chances claras para os dois times. Até que, no início do segundo tempo, já na casa dos 57, Kleff rebateu um chute de Mazzola para frente e Jair descarregou a tensão das faltas recebidas ao colocar a pelota na rede.

A Uefa decidiu e a Inter teve nova chance: em Berlim, Mazzola e sua trupe podiam perder por até um gol de diferença (imago)

Depois que a Inter fez 3 a 1, o ritmo do jogo caiu e as emoções ficaram guardadas para o final. Aos 89 minutos, os nerazzurri não conseguiram cortar um cruzamento espirrado e, após Heynckes ganhar de Facchetti, Wittkamp – que entrara no lugar de Bleidick, aos 22 – colocou na rede. No lance seguinte, porém, Ghio foi oportunista e apareceu na área do Mönchengladbach para aproveitar a sobra de um chute espirrado e fechou o placar.

Depois da vitória da Inter em Milão, as atenções se voltaram novamente aos bastidores. Afinal, o Borussia apelou da decisão que determinava o embate em campo neutro sem público e a sua petição seguia tramitando. A indignação com todo o desenrolar do caso, da anulação do jogo de ida à inversão de mandos surtiria efeito, e a Uefa acabou permitindo que o novo confronto ocorresse em Berlim, no Olympiastadion, com presença de torcedores – e não eram poucos, visto que o estádio receberia 84,5 mil pagantes. O cenário, embora distante de casa, ainda favorecia o Gladbach, que conseguiu lotar as arquibancadas na peleja decisiva.

A Inter, por sua vez, também apresentou recursos: pedira a exclusão do adversário do torneio, o que não ocorreu, e obteve a redução da suspensão de Corso, que havia pego 14 partidas de gancho pelo chute ao árbitro. Na nova sentença, teria de cumprir somente três, mas o meia não voltou a atuar na Copa dos Campeões. Já veterano, deixaria a Beneamata em 1973 e nem mesmo jogou novamente em torneios Uefa no restante de sua carreira, encerrada em 1975, no Genoa.

Boninsegna, pivô da anulação do jogo em Mönchengladbach, ficou em evidência no confronto de Berlim (imago)

No Olympiastadion, o clima era tenso naquele 1º de dezembro. Prisco, alvo de insultos da torcida dos Fohlen, compareceu ao jogo com um cachecol tricolor, nas cores da bandeira italiana, em gesto que mesclava orgulho e provocação. O Gladbach, determinado a provar que o 7 a 1 anulado não fora um acaso, partiu para o ataque no lado ocidental de Berlim. Já a Inter, fiel à sua tradição defensiva, se fechou e apostou nos contra-ataques. Afinal, poderia perder por até um gol de diferença.

O jogo foi truncado, cheio de faltas e interrupções. No segundo tempo, o árbitro Jack Taylor – sim, Dorpmans foi substituído – assinalou pênalti para o Borussia, e o garoto Bordon, que ganhara a vaga de Vieri no intervalo da partida da latinha, defendeu a cobrança de Sieloff, preservando o 0 a 0 que se arrastaria até o fim. Considerando o empate na Alemanha Ocidental e a vitória em San Siro, os italianos garantiram a classificação pelo placar agregado.

Nos tribunais e nas arquibancadas, a polêmica parecia não ter fim: de um lado, os simpatizantes do Gladbach – ou os que detestam a Inter – enxergavam um escândalo jurídico, uma injustiça histórica; de outro, se entendia que a frieza processual havia compensado a distorção causada pelo destempero de uma parte do público germânico. O fato é que a decisão marcou o início de uma série de debates sobre a jurisdição e os limites da Uefa em casos de incidentes causados por torcedores. A partir daquele episódio, a entidade passou a adotar medidas mais rígidas de segurança e protocolos específicos para invasões e arremessos de objetos. A “partida da latinha”, como ficou conhecida, tornou-se um precedente jurídico de referência, citado em inúmeros casos posteriores.

Precisando virar o confronto, o Gladbach esbarrou na forte defesa da equipe italiana (imago/Horstmüller)

A Inter, fortalecida após passar pela polêmica eliminatória, chegou até a final daquela edição da Copa dos Campeões. Superou o Standard de Liège nas quartas e o Celtic nas semifinais, vingando a derrota sofrida na decisão, quatro anos antes. Na finalíssima, disputada em Roterdã, enfrentou o Ajax de Johan Cruyff, que já carregava consigo os preceitos da era do futebol total e vencera a edição de 1971, sobre o Panathinaikos. O time de Amsterdã venceu por 2 a 0, dando sequência à sua própria dinastia continental – no ano seguinte, venceria a Juventus. Em âmbito doméstico, os nerazzurri ficaram apenas na quinta posição da Serie A e não se classificaram para competições europeias em 1972-73.

Por sua vez, Prisco, um dos personagens daquele confronto, continuou ocupando um lugar no coração dos interistas até sua morte, em 2001, depois de quase cinco décadas como vice-presidente nerazzurro. O advogado que teve a astúcia necessária para apagar, na base da argumentação, um 7 a 1 e reabrir as chances de classificação para a Inter reconheceria, anos depois, que aquela defesa fora uma de suas maiores vitórias pessoais.

O Gladbach, por sua vez, nunca superou completamente a sensação de injustiça, embora tenha seguido sua trajetória gloriosa, afirmando-se como o principal rival do Bayern de Munique, colecionando títulos e revelando talentos que fariam história na seleção germânica: até 1980, os Potros ganharam três edições da Bundesliga, duas da Copas Uefa e uma da Copa da Alemanha. Ademais, acumularam vices do Alemão, da Copa Uefa, da Copa dos Campeões e da Copa Intercontinental. E ressignificaram a lata de Coca-Cola que atingiu Boninsegna.

Se Vieri falhou no jogo anulado, Bordon surgiu bem e frustrou uma possível reação do Mönchengladbach com pênalti defendido em Berlim (imago)

O objeto da discórdia daquela noite de outono no Bökelbergstadion ficou com o árbitro Dorpmans, que decidiu guardá-la como uma lembrança peculiar daquela partida tumultuada. A latinha entregue por Mazzola viajou até Arnhem e, mais tarde, passou ao Vitesse, clube pelo qual o apitador havia atuado antes de se dedicar à carreira de juiz. Quando o episódio completou 40 anos, o Borussia Mönchengladbach entrou em contato com a agremiação holandesa para solicitar a volta da lata à cidade do incidente, a fim de expô-la em seu museu. Desde então, o memorial dos Potros conta com uma insólita Coca-Cola em seu acervo.

Quem diria que uma mera latinha de refrigerante se tornaria um símbolo ambíguo de uma noite que passou da glória à amargura para os alemães e que daria sobrevida aos italianos? As parcas imagens granuladas registradas pelas câmeras da época não são conclusivas e deixaram o debate de mesa de bar em aberto. O que realmente ocorreu – se o impacto foi forte, se o atacante exagerou, se o árbitro deveria ter interrompido o jogo – jamais será determinado com absoluta certeza. O que se sabe é que, entre as ruínas de um 7 a 1 anulado e uma classificação contestada, a jurisprudência do futebol europeu foi redefinida porque alguém decidiu dar um insólito destino a uma coquinha gelada.

Borussia Mönchengladbach 7-1 Inter (jogo anulado)

Borussia Mönchengladbach: Kleff; Sieloff; Vogts, Müller, Bleidick; Kulik, Bonhof; Wimmer, Netzer (Wittkamp), Le Fevre; Heynckes. Técnico: Hennes Heisweiler. Inter: Vieri (Bordon); Oriali, Burgnich, Giubertoni, Facchetti; Bedin, Fabbian; Jair da Costa, Mazzola, Corso; Boninsegna (Ghio). Técnico: Giovanni Invernizzi. Gols: Heynckes (7′ e 44′), Le Fevre (21′ e 34′), Netzer (42′ e 52′) e Sieloff (83′); Boninsegna (19′) Cartão vermelho: Corso Árbitro: Jef Dorpmans (Países Baixos) Local e data: Bökelbergstadion, Mönchengladbach (Alemanha Ocidental), em 20 de outubro de 1971

Inter 4-2 Borussia Mönchengladbach

Inter: Bordon; Bellugi, Burgnich, Giubertoni, Facchetti; Bedin, Oriali; Jair da Costa (Ghio), Mazzola (Fabbian), Frustalupi; Boninsegna. Técnico: Giovanni Invernizzi. Borussia Mönchengladbach: Kleff; Sieloff; Vogts, Müller, Bleidick (Wittkamp); Kulik, Bonhof; Wimmer, Netzer, Le Fevre; Heynckes. Técnico: Hennes Heisweiler. Gols: Bellugi (10′), Boninsegna (13′), Jair da Costa (57′) e Ghio (90′); Le Fevre (31′) e Wittkamp (89′) Árbitro: Rudolf Scheurer (Suíça) Local e data: estádio San Siro, Milão (Itália), em 3 de novembro de 1971

Borussia Mönchengladbach 0-0 Inter

Borussia Mönchengladbach: Kleff; Sieloff; Vogts, Müller (Surau), Danner (Wittkamp); Kulik, Bonhof; Wimmer, Netzer, Le Fevre; Heynckes. Técnico: Hennes Heisweiler. Inter: Bordon; Bellugi, Burgnich, Giubertoni, Facchetti; Bedin, Oriali; Ghio (Pellizzaro), Mazzola, Frustalupi; Boninsegna. Técnico: Giovanni Invernizzi. Árbitro: Jack Taylor (Inglaterra) Local e data: Olympiastadion, Berlim (Alemanha Ocidental), em 1º de dezembro de 1971

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