Calciopédia
·30 de março de 2020
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·30 de março de 2020
A temporada 1983-84 foi inesquecível para a torcida giallorossa. Pela primeira vez na história, um time da capital italiana chegou a uma semifinal de Copa dos Campeões, atual Liga dos Campeões. A Roma de Falcão, Roberto Pruzzo, Agostino Di Bartolomei e Bruno Conti, que encantou os gramados italianos e ficou com o scudetto na campanha de 1982-83, chegava para brilhar em palcos europeus. Comandados pelo sueco Nils Liedholm, os lobos se classificaram para a grande final, que seria disputada em casa, no estádio Olímpico, após vencerem IFK Göteborg, CSKA Sofia, Dynamo Dresden e Dundee United.
Apesar de qualquer final ser o ápice de um campeonato, para a Roma, o grande jogo de sua campanha não foi o da decisão. A derrota, nos pênaltis, para o Liverpool de Kenny Dalglish, Graeme Souness e Ian Rush é contada em verso e prosa e só na Calciopédia foi analisada em três textos – aqui, neste segundo e também neste outro. Se o duelo entre giallorossi e Reds é comentado até hoje, nem tanto, porém, se fala sobre a apoteose dos italianos na histórica semifinal contra os escoceses do Dundee United. Naquele dia, a torcida romanista, eufórica, invadiu até o campo do Olímpico.
O jogo de ida daquelas semifinais foi disputado no Tannadice Park, em Dundee, na Escócia. Com um público de 21 mil pessoas apoiando o time da casa, a equipe comandada por Jim McLean venceu a Roma por 2 a 0. Os dois gols aconteceram na segunda etapa: o atacante Billy Dodds abriu o placar aos 48 minutos e o zagueiro Derek Stark ampliou aos 60. O autor do segundo gol dos tangerinas na partida, teve contra a Roma o seu último grande feito. Afinal, três semanas depois, fez sua última partida como profissional: devido a um problema no joelho, teve de se aposentar com apenas 26 anos.
A derrota por dois gols de diferença na Escócia forçava a Roma a vencer, em casa, por pelo menos 3 a 0. Portanto, o clima para o jogo no Olímpico era de muita pressão. Mas também havia apetite de revanchismo: é que, em Tannadice Park, o técnico McLean provocou os romanistas com ofensas à capital da Itália e aos italianos. Essa hostilidade motivou os jogadores da Loba, que ficaram ainda mais ansiosos para superar o time escocês. Acontecimentos obscuros nos bastidores, que só viriam à tona alguns anos depois, também movimentariam o pré-jogo – falaremos sobre eles logo mais.
Chegou, então, o dia 25 de abril de 1984. Naquela quarta-feira, que nem feriado era, a Roma encarou o Dundee United num horário atípico para jogos da Copa dos Campeões: às 15h30. E, na tarde ensolarada que embelezava a Cidade Eterna, o Olímpico recebeu um público de pouco mais de 68 mil pessoas. Com tanta gente lhe empurrando, a equipe giallorossa teve uma das mais memoráveis atuações da sua história.
Os romanistas foram liderados por Pruzzo, que marcou dois gols no jogo e terminou a Copa dos Campeões como vice-artilheiro, com cinco tentos no total. O bigodudo foi a peça-chave para a primeira vitória da Roma numa semifinal da competição em sua história. A equipe da capital só teria o gostinho de voltar a disputar esta fase do torneio mais importante da Europa em 2018, quando foi eliminada pelo Liverpool, seu eterno carrasco.
Contra o Dundee United, a Roma jogou em um 4-3-3 que, por vezes, se transformava num 3-5-2, devido à movimentação das peças. Fixos na defesa, Michele Nappi, Ubaldo Righetti e Sebastiano Nela davam sustentação para que o lateral-esquerdo Aldo Maldera fosse agudo no ataque. Ao mesmo tempo, Conti dava amplitude pelo flanco oposto e Francesco Graziani encostava em Pruzzo.
O meio-campo funcionava com Di Bartolomei nas vestes de primeiro volante, Toninho Cerezo como homem pela direita, e Falcão mais fixo, como regista. “Diba”, o capitão giallorosso, era responsável pela armação da equipe, jogando, assim, próximo da dupla de zaga, e indo até a área adversária. Cerezo, por sua vez, costumava se valer de seus passos largos para encostar nos atacantes e contribuir com as ações ofensivas do time.
O time da casa começou a partida já com o domínio da bola – e o teve por quase todo o duelo. A Roma propunha o jogo, atacando sem parar, e quase viu sua estratégia ir por água abaixo nos minutos iniciais, quando sofreu com um contra-ataque. Para sua sorte, Steven Milne, sozinho na área, isolou. Os giallorossi tiveram um gol mal anulado com menos de 10 minutos de partida e continuaram em cima dos campeões escoceses de 1983. O ímpeto romano foi recompensado aos 23 minutos, quando Pruzzo abriu o placar da partida após escanteio cobrado por Conti.
Quinze minutos depois sairia o segundo gol romano, também com Pruzzo. A Roma construiu boa troca de passes e uma tentativa de elevação de Di Bartolomei para a infiltração de Maldera deu certo: o lateral escorou, o camisa 9 dominou no peito e bateu rasteiro, no canto de McAlpine. Com todo o segundo tempo pela frente, a Roma só precisava de um tento para se garantir na final da Copa dos Campeões. E ele veio aos 58 minutos, num contra-ataque fulminante: Conti acionou Cerezo em profundidade e o brasileiro só rolou para Pruzzo ficar cara a cara com o goleiro. O centroavante tirou McAlpine e foi derrubado clamorosamente, dentro da área. Na cobrança, o maestro Di Bartolomei fez o gol que valia a classificação.
No decorrer da partida, a Roma não sofreu com investidas do Dundee United e Conti ainda um segundo gol anulado pela arbitragem. Ao apito final, a explosão: parte da torcida invadiu o gramado do Olímpico e os jogadores romanistas puderam extravasar seu descontentamento com McLean. Righetti, Di Bartolomei, Nela e Cerezo foram para cima da delegação escocesa, no intuito de dizer poucas e boas para o treinador falastrão. Em uma foto que roda o mundo até hoje, Nela foi flagrado mostrando o dedo médio para o escocês.
A heroica vitória no Olímpico colocou o time da capital no lugar mais alto da sua história em campos europeus. Um mês depois, a Roma voltaria ao seu estádio para fazer a contra o Liverpool e sairia derrotada, nos pênaltis, após empate por 1 a 1 no tempo normal e na prorrogação. Fim da história? Não, e nem mesmo o jogo contra o Dundee United era dado como encerrado. É que, no apagar das luzes de 1985, a Uefa abriu um inquérito para investigar uma tentativa de fraude esportiva.
Em novembro daquele ano, Paolo Bergamo (árbitro Fifa) denunciou a Federico Sordillo, presidente da Federação Italiana de Futebol (FIGC), que o dono da Roma, Dino Viola, teria tentado subornar Michel Vautrot, francês que apitou a partida de volta da semifinal com o Dundee United, com o valor de 100 milhões de liras – correspondente a alguns milhares de euros. Um processo foi instaurado contra o cartola e os intermediários (os ex-jogadores Giampaolo Cominato e Spartaco Landini, então diretor do Genoa), e outra sindicância foi aberta contra Bergamo, que demorou a dedurar a trama e informar seus superiores.
Viola não negou que tenha efetuado um pagamento. Na verdade, o dirigente se defendeu das acusações ao afirmar que fora Landini que se aproximara com a conversa de que o árbitro era “abordável”. O presidente da Roma interpretou as palavras de Spartaco como chantagem: o suborno não teria o objetivo de auxiliar o time italiano, mas de não prejudicá-lo. Viola afirmou que continuou a negociata para tentar descobrir quem estava por trás do esquema e alegou que tais propostas eram comuns nos bastidores do futebol, e sempre com o intento de extorsão.
Após as oitivas do inquérito, não ficou provado que Vautrot soubesse da transação e muito menos que tivesse recebido o dinheiro. O árbitro passou ileso, apitou a final da Copa dos Campeões de 1986, a semifinal entre Itália e Argentina no Mundial de 1990 e ainda foi condecorado diversas vezes pelo governo francês. Viola foi punido com gancho de quatro anos pela tentativa de suborno, mas foi absolvido em recurso à FIGC.
Livre de acusações, o cartola ainda entrou como parte interessada no processo cível contra Landini e Cominato, que foram sentenciados por fraude a um ano em regime aberto e à restituição dos 100 milhões de liras ao romanista. Bergamo, por sua vez, foi suspenso por três meses pela demora em delatar Viola. Em 2006, o ex-árbitro seria um dos pivôs do escândalo Calciopoli.
Torcedores, jogadores e estafe técnico do Dundee United reclamam até hoje de um suposto “roubo” naquele jogo do Olímpico. Mas o fato é que a Roma jogou melhor, mereceu a vitória de longe e ainda foi prejudicada por erros de arbitragem: dois gols legais de Conti foram mal anulados e um pênalti em Cerezo não foi marcado. Se recebeu qualquer vantagem indevida, Vautrot se portou como um verdadeiro traíra.
Os romanistas, por sua vez, não voltariam a disputar finais do principal torneio de clubes do continente. Mas, em alguma medida, viveriam uma sensação parecida ao êxtase da reviravolta sobre os escoceses 24 anos depois daquela tarde na Cidade Eterna. No mesmo estádio, a Roma avançou pela segunda vez a uma semifinal ao vencer o Barcelona por 3 a 0 e recuperar uma desvantagem de 4 a 1. Mas essa é uma história para outro dia.
Local e data: Estádio Olímpico, 25 de abril de 1984 Gols: Pruzzo (21′), Pruzzo (40′) e Di Bartolomei (58′) ROMA (4-3-3): Tancredi; Nappi, Righetti, Nela, Maldera; Cerezo (Oddi), Falcão, Di Bartolomei; Conti, Pruzzo (Chierico), Graziani. Técnico: Nils Liedholm. DUNDEE UNITED (5-3-2): McAlpine, Stark (Holt), Narey, Gough, Hegarty, Malpas; Milne, Kirkwood, Bannon; Sturrock, Dodds. Técnico: Jim McLean. Árbitro: Michel Vautrot (França).