
Calciopédia
·29 de setembro de 2025
Em 1988, uma Atalanta ‘de segunda’ foi à semifinal da Recopa e parou só no Mechelen

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·29 de setembro de 2025
O fascínio das competições europeias não se resume apenas às noites iluminadas pelas suas grandes potências. Existe também um lado alternativo, feito de confrontos inesperados que colocam frente a frente clubes de fora do eixo hegemônico, mas capazes de escrever páginas memoráveis. Se hoje a Conference League concentra boa parte desses encontros improváveis, no passado eles eram muito mais disseminados em todas as competições da Europa, tendo a Recopa Uefa como palco mais propício para sua ocorrência. Na edição de 1987-88 do certame, a Atalanta foi protagonista de uma dessas histórias: então rebaixada à Serie B, a Dea se tornou a única equipe italiana a disputar um torneio continental enquanto militava na segundona só parou nas semifinais, ao ser derrotada pelo Mechelen, da Bélgica.
A Recopa Uefa é uma competição que não existe mais, mas que, de 1960 a 1999, reuniu campeões nacionais de copa – e, por ter apenas um representante por país e, nem sempre os times mais fortes de cada nação, concentrava um charme particular. A Atalanta era uma dessas equipes marginais e teve seu passaporte europeu carimbado como efeito colateral de um fracasso doméstico.
Na temporada anterior, a Dea, então comandada por Nedo Sonetti, foi rebaixada para a segundona, mas também chegara à final da Coppa Italia. Porém, foi atropelada pelo Napoli de Diego Armando Maradona, que não tomou conhecimento dos bergamascos e construiu uma vitória por 4 a 0, considerando o placar agregado dos jogos de ida e volta. Só que, como o clube partenopeo garantiu vaga na Copa dos Campeões ao conquistar o scudetto, a Atalanta herdou a vaga na Recopa e seria a representante da Itália na Europa ao mesmo tempo em que disputaria a Serie B. Um paradoxo histórico e inédito: pela primeira vez, uma equipe da segunda divisão do país se apresentava em palcos internacionais.
A torcida nerazzurra viajou em peso até a Bélgica (Arquivo/Atalanta Story)
Eram outros tempos e a Serie B, certamente, era a segunda divisão mais forte do mundo. A Atalanta, por exemplo, nem chegou a perder muitos jogadores importantes após o rebaixamento: saíram o veterano Trevor Francis, que voltou ao Reino Unido, e o capitão Marino Magrin, vendido à Juventus; mais tarde, no outono, Giuseppe Incocciati rumaria ao Empoli. Em contrapartida, chegaram Daniele Fortunato, Eligio Nicolini, Oliviero Garlini e Ivano Bonetti, e permaneceram Ottorino Piotti, Valter Bonacina, Domenico Progna, Cesare Prandelli, Andrea Icardi, Aldo Cantarutti e o ídolo Glenn Peter Strömberg. No papel, o elenco de segundona da Dea era melhor do que aquele que disputara a elite. Apesar disso, era um plantel com pouca experiência em torneios da Uefa.
O sorteio da primeira fase foi benévolo e colocou no caminho do time de Emiliano Mondonico os galeses do Merthyr Tydfil, um adversário amador, de cidade homônima e próxima a Swansea e Cardiff, capital do País de Gales. Uma surpresa, no entanto, foi registrada na ida: derrota por 2 a 1 no Reino Unido, resultado que gerou críticas ferozes e o temor na Itália de que uma equipe da Serie B viesse a representar mal o futebol nacional. A falta de experiência internacional cobraria seu preço? O receio se dissipou em Bérgamo, quando os nerazzurri venceram por 2 a 0 com autoridade, afastaram o vexame e mostraram que a aventura europeia estava apenas começando.
Na fase seguinte, o desafio aumentou com o OFI Creta, da Grécia, que – devido a uma punição – não pôde mandar o jogo de ida em Heraklion, sua cidade, e recebeu a Atalanta em Tessalônica. Ainda assim, os helênicos venceram por 1 a 0. No retorno ao Comunale, a Atalanta foi empurrada pelo ambiente fervoroso e resolveu a questão: Nicolini abriu o placar e Garlini ampliou, garantindo nova virada e a classificação às quartas de final.
O duelo de semifinais entre Atalanta e Mechelen não colocava frente a frente os favoritos ao título da Recopa (Guerin Sportivo)
O adversário seguinte trazia uma carga de lembranças antigas. O sorteio reservou o Sporting, o mesmo que, em 1963, havia sido o algoz dos bergamascos na estreia continental, também na Recopa Uefa. Naquele ano, a Atalanta, campeã da Coppa Italia, vencera o primeiro duelo por 2 a 0 em casa, mas sucumbira em Lisboa por 3 a 1. Como ainda não existia a regra do gol fora de casa, que levaria os nerazzurri à fase posterior, foi necessário um jogo de desempate em Barcelona, onde os portugueses venceram na prorrogação – mais tarde, levantariam o troféu da competição. O fantasma do passado parecia assombrar novamente a Dea em 1988.
Desta vez, porém, a história tomou outro rumo. Em Bérgamo, triunfo por 2 a 0, com gols de Cantarutti e Nicolini, resultado que deu confiança ao time de Mondonico. A volta, num José Alvalade lotado, foi um épico de resistência: desfalcada e em clara emergência física, a Atalanta segurou a pressão até sofrer um gol aos 66 minutos. O ambiente incendiava os lisboetas, que acreditavam na remontada, mas, contra todas as probabilidades, Cantarutti voltou a ser decisivo e, aos 81, anotou o tento da classificação.
Até aquele momento, Mondonico não dava tanta importância à Recopa. Sua prioridade era levar a Atalanta de volta à Serie A, e a segundona tinha vários competidores de peso – Bologna, Lazio, Lecce, Catanzaro, Bari, Genoa, Cremonese, Brescia, Udinese e Parma tinham esperanças de lutar pelo acesso e só quatro subiam. Só que o destino pregou uma peça na Itália e deixou a Dea em evidência: todos os times do país foram eliminados dos torneios continentais e a equipe bergamasca, ainda que num nível inferior do futebol nacional, sobrou como única representante da Bota na Europa. Como os nerazzurri estavam bem posicionados no certame de pontos corridos e faltavam apenas três partidas para uma inédita glória em âmbito internacional, as atenções se dividiram.
O Mechelen saiu na frente no início, mas Strömberg logo empatou para a Atalanta (L’Eco di Bergamo)
De um lado do chaveamento da Recopa Uefa, os favoritos Ajax e Olympique de Marseille se digladiavam e fariam um duelo com cara de final antecipada. Do outro, a Atalanta encarava os belgas do Mechelen, apontados como o adversário mais acessível. Na prática, era um time emergente e poderoso, que rivalizava com Anderlecht e Standard Liège na Bélgica e que contava com talentos como o goleiro Michel Preud’homme, um dos maiores da história, o atacante israelense Eli Ohana e os holandeses Erwin Koeman, Graeme Rutjes e Piet den Boer – os dois primeiros jogariam a Copa do Mundo de 1990. Em seu caminho até as semifinais, os aurirrubros eliminaram Dinamo Bucareste (da Romênia, por um placar agregado de 3 a 0), St. Mirren (Escócia, 2 a 0) e Dinamo Minsk (União Soviética, 2 a 1).
O primeiro jogo foi na Bélgica, no estádio Achter de Kazerne – em tradução literal, seu nome significa “atrás da caserna”, mas, na verdade, nos fundos da praça esportiva está localizado o cemitério municipal. Cerca de 3 mil torcedores da Atalanta viajaram até a região metropolitana da Antuérpia para apoiarem a equipe. Strömberg, que estava lesionado, se recuperou a tempo para a partida, e sua presença seria fundamental. Assim como a de Garlini, que vinha fazendo ótima Serie B e lideraria o ataque sozinho, apoiado por Nicolini.
Adepto da marcação individual, Mondonico colocou Costanzio Barcella colado em Den Boer e Carmine Gentile na cola de Ohana. Não funcionou, já que o israelense abriu o placar logo aos 7 minutos: o atacante aproveitou uma cobrança de falta vinda da direita e se antecipou a Progna para marcar. A reação atalantina, no entanto, foi imediata, e em jogada de manual. Na casa dos 8, Nicolini cobrou falta no primeiro pau e achou Strömberg desviou para as redes, empatando o jogo.
Na Bélgica, Nicolini perdeu chance que faria falta à Dea (L’Eco di Bergamo)
Embalada pelo empate, a Atalanta se lançou com coragem. Bonetti foi bloqueado por Koeman cara a cara com o goleiro, enquanto Strömberg, desta vez de cabeça, não conseguiu superar o gigante Preud’homme. O Mechelen, entretanto, voltaria fortalecido do intervalo, e mais organizado após ajustes do técnico holandês Aad de Mos, discípulo de Leo Beenhakker e ex-Ajax. Rapidamente, os belgas criaram duas oportunidades e assustaram os bergamascos, mas Barcella travou Pascal De Wilde no momento exato e Icardi salvou em cima da linha uma cabeçada de Den Boer. A blitz dos mandantes permitia contra-ataques e foi num deles que Nicolini teve a bola da noite. Porém, o meia isolou a finalização, num lance que atormentaria os nerazzurri por décadas.
O técnico De Mos mexeu no time, colocando Paul De Mesmaeker no lugar de Joachim Benfeld, e Mondo respondeu de maneira pragmática e conservadora: sacou o ofensivo ala canhoto Bonetti para lançar Andrea Salvadori, que atuava na mesma posição, mas com outras características. O recuo foi fatal. Aos 83 minutos, o Mechelen teve uma falta na entrada da área e, após cobrança ensaiada, Marc Emmers soltou um petardo que Fortunato salvou corajosamente em cima da linha, colocando a cabeça na bola. Só que a pelota ganhou altura, não saiu da área e acabou sobrando para Den Boer, com categoria, acertar um voleio preciso, que decretou o 2 a 1.
Parecia um castigo amargo para a Dea, que saía derrotada, mas não sem esperanças de reverter a eliminatória em Bérgamo, o que já havia ocorrido contra Merthyr Tydfil e OFI – lhe bastaria, devido à regra do gol fora de casa, um triunfo magro. O Mechelen, entretanto, tinha outro nível e um ótimo retrospecto como visitante: estava invicto, sempre balançara as redes longe da Bélgica e havia vencido Dinamo Bucareste e St. Mirren com autoridade.
Na volta, a equipe capitaneada por Gentile precisava de vitória simples para avançar à final (L’Eco di Bergamo)
Os dias que antecederam a partida de volta foram de febre em Bérgamo, como não poderia deixar de ser. A possibilidade de presenciar a história acontecer no Comunale fez com que filas quilométricas se formassem para a compra de ingressos, enquanto jornais nacionais, que antes tratavam a campanha da Atalanta com pouco destaque e até com certo desdém, se renderam ao feito dos nerazzurri. No dia 20 de abril de 1988, o estádio bergamasco receberia quase 40 mil torcedores.
A torcida nerazzurra sonhava em ver a dupla formada por Garlini e Cantarutti em campo desde o início, mas Mondonico foi conservador novamente e preferiu manter o desenho tático habitual de sua equipe, com apenas um centroavante de ofício e Nicolini e Bonetti agindo como principais abastecedores do ataque. Do outro lado, De Mos alçou o muro, sacando Den Boer para escalar um defensor a mais – no caso, o lateral-esquerdo Geert Deferm. A Dea se valia das bolas aéreas para tentar furar o bloqueio dos flamengos, que veriam Preud’homme voar para mandar para escanteio uma cabeçada venenosa do gigante Strömberg.
Faltando seis minutos para o intervalo, a torcida da Atalanta finalmente tirou o grito de gol da garganta. Icardi cruzou, a bola bateu no braço de Emmers dentro da área e o árbitro soviético Valery Butenko não hesitou em apontar a marca do pênalti. Garlini foi para a cobrança decidido, bateu no canto e colocou a Dea, por instantes, com um pé na final europeia. Mas ainda havia muito jogo pela frente.
A Atalanta chegou a sair na frente com Garlini, de pênalti (L’Eco di Bergamo)
No segundo tempo, De Mos reconheceu o erro cometido e colocou Den Boer no lugar de De Mesmaeker. Só que foi a Atalanta que teve uma chance inacreditável de ampliar: Fortunato recebeu cruzamento e testou com violência, mas Preud’homme desviou a bola com a ponta dos dedos, o suficiente para que ela explodisse na trave e fosse para longe. Depois, aos 56 minutos, Rutjes silenciou o Comunale num lance fortuito. Uma falta foi lançada à área e, após a dividida aérea, o holandês nem deixou a pelota cair para, da quina da área, acertar uma girada fulminante e inesperada, que morreu no canto direito de Piotti.
O empate mantinha viva a esperança da prorrogação, mas obrigava os nerazzurri a se exporem. Assim, Mondonico lançou Cantarutti no lugar do lateral-direito Gianpaolo Rossi, recuando Icardi, a vinte minutos do fim. Ativo, o atacante chegou a flertar com o segundo gol em cabeçada perigosa, que passou à esquerda da meta de Preud’homme.
Entretanto, a sentença que condenou a Atalanta saiu dos pés de Emmers, que cometera o pênalti no primeiro tempo, e num lance de sorte para o belga – estrela que, por óbvio, acompanha os competentes. O meia avançou pela esquerda, carregou para dentro e, contando com o escorregão de Strömberg, teve a chance de arriscar da entrada da área. O chute forte tocou no famoso morrinho artilheiro e passou por Piotti, que só encostou na bola.
Os nerazzurri acabaram sofrendo a virada no fim da partida e, sem muitas ideias, esmoreceram (L’Eco di Bergamo)
A Dea precisava virar e ainda teve uma chance clamorosa de empatar com o seu grande meia sueco, numa jogada que deixou a zaga do Mechelen confusa e enganou até o narrador Bruno Pizzul. Todos acharam que a arbitragem assinalaria impedimento, e talvez até o escandinavo tenha caído na armadilha: sem confiança e atônito, sozinho frente a Preud’homme e com dois colegas livres de frente para o gol escancarado, demorou a se decidir e só chutou fraco, em cima do goleiro.
A enorme chance desperdiçada representou o verdadeiro balde de água fria na Atalanta, que caía em casa e, por pouco, deixava escapar a classificação para uma final continental – algo que parecia sonho distante para uma equipe de Serie B. Mas aqueles tempos eram frutíferos para o Mechelen, que surpreendeu o Ajax na final e, após ganhar a Recopa, ainda faturou a Supercopa Uefa no início da temporada seguinte. O título belga de 1988 acabou escapando e ficando com o Club Brugge, mas em 1989 os aurirrubros levantaram a taça que dava direito à participação na Copa dos Campeões. No torneio continental, iriam até as quartas e parariam no Milan, que vingou a rival italiana e ergueu a orelhuda meses depois.
Em 1988, a Atalanta pôde se consolar com a promoção à Serie A, que era a principal meta da temporada e foi alcançada com dificuldade ao fim de sua trajetória no campeonato. E, sobretudo, com a certeza de ter vivido a aventura mais romântica de sua história europeia até então: uma equipe de segundona, sofrendo com limitações e desconfianças, foi capaz de rivalizar com times mais fortes e de fazer uma cidade inteira se derreter de orgulho. Pouco depois, em 1990-91, a Dea teve uma boa participação na Copa Uefa e ficou entre as oito melhores da competição. Porém, festa, de fato, só décadas depois, quando a gestão de Gian Piero Gasperini fez os nerazzurri disputarem a Champions League com frequência e, em 2024, faturarem a Liga Europa numa decisão histórica contra o Bayer Leverkusen.
Mechelen: Preud’homme; Hofkens; Emmers, Clijsters, Rutjes, Sanders; De Wilde, Benfeld (De Mesmaeker), Koeman; Den Boer, Ohana. Técnico: Aad de Mos. Atalanta: Piotti; Rossi, Gentile, Barcella, Progna; Icardi, Strömberg (Consonni), Fortunato, Bonetti (Salvadori); Nicolini; Garlini. Técnico: Emiliano Mondonico. Gols: Ohana (7′) e Den Boer (83′); Strömberg (8′) Árbitro: Emilio Soriano Aladrén (Espanha) Local e data: estádio Achter de Kazerne, Mechelen (Bélgica), em 6 de abril de 1988
Atalanta: Piotti; Rossi (Cantarutti), Gentile, Barcella, Bonacina; Icardi (Compagno), Strömberg, Fortunato, Bonetti; Nicolini; Garlini. Técnico: Emiliano Mondonico. Mechelen: Preud’homme; Hofkens; Emmers, Clijsters, Rutjes, Deferm; De Wilde (Jaspers), Sanders, De Mesmaeker (Den Boer), Koeman; Ohana. Técnico: Aad de Mos. Gols: Garlini (39′); Rutjes (56′) e Emmers (79′) Árbitro: Valeri Butenko (União Soviética) Local e data: estádio Comunale, Bérgamo (Itália), em 20 de abril de 1988
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