Calciopédia
·08 de maio de 2020
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Partidas que acontecem na última rodada de um campeonato costumam entrar para a história por serem decisivas. Em geral, estão em jogo um título, uma vaga em competição continental ou uma suada permanência na categoria. Mas existem também raros casos de duelos finais que não valem nada e, mesmo assim, são capazes de ficarem marcados como belas páginas do futebol. Aconteceu em 1992, quando o mágico Foggia de Zdenek Zeman recebeu o Milan invencível de Fabio Capello pela Serie A.
O placar chama a atenção logo de cara: 8 a 2 para o time visitante, com duas viradas no decorrer do jogo. Na fase moderna do Campeonato Italiano, este foi um dos placares mais elásticos já registrados e o maior triunfo de um visitante. De certa forma, a partida realizada no estádio Pino Zaccheria simbolizou aqueles dois times. De um lado, tínhamos um Foggia que era feito à imagem e semelhança de seu treinador; do outro, um Milan comandado por um jovem técnico que aproveitava a herança de Arrigo Sacchi, mas que mostrava que podia potencializar um elenco estelar. Não à toa, conquistaria o seu primeiro scudetto de forma invicta e construiria uma carreira sólida dali para frente.
O Foggia de Zeman foi uma das equipes mais ousadas da história do futebol italiano. Na Zemanlândia, os satanelli atacavam a todo vapor, na tentativa de fazer o máximo de gols possível, e pouco se preocupavam com aspectos defensivos. Poderiam golear (como no 5 a 0 sobre o Verona ou no 4 a 1 no clássico contra o Bari), serem goleados (4 a 1 para a Juventus e 5 a 2 para a Lazio) ou até mesmo protagonizarem empates pirotécnicos – 3 a 3 com Napoli e Fiorentina e 4 a 4 com a Atalanta. Com tantas bolas nas redes, o nono colocado da Serie A 1991-92 teve o segundo melhor ataque e a segunda pior defesa da competição.
Por sua vez, o Milan garantira a taça com duas rodadas de antecedência, ao bater o Napoli em pleno San Paolo. O time de Capello produziu resultados avassaladores em sua campanha, como um 5 a 0 sobre os partenopei no primeiro turno e os triunfos impactantes sobre a Sampdoria, então campeã italiana: 2 a 0 em Gênova e 5 a 1 no Giuseppe Meazza. O Diavolo chegava à última rodada com a possibilidade de ser o primeiro time a faturar a Serie A de forma invicta. Marco van Basten, com 23 gols, tinha seis a mais que Roberto Baggio, e estava prestes a ser artilheiro do campeonato pela segunda vez na carreira.
O prestígio da partida era tanto que Sacchi, então técnico da seleção italiana, viajou até o interior da Apúlia para assisti-la in loco. O Milan era a base da Nazionale: o Mago de Fusignano contava com Paolo Maldini, Franco Baresi, Alessandro Costacurta, Mauro Tassotti, Alberigo Evani, Roberto Donadoni, Demetrio Albertini e Daniele Massaro. Contudo, também havia jogadores interessantes no outro rossonero do dia. No Foggia, Arrigo observava Francesco Baiano, que já fizera vestir azzurro poucos meses antes, e o recém-convocado Giuseppe Signori.
A partida ficaria a cargo de um jovem Pierluigi Collina, que aos 32 anos fazia sua primeira temporada na Serie A. O árbitro toscano foi designado para um jogo que acabou ganhando um ingrediente trágico. No dia anterior, a organização mafiosa Cosa Nostra havia realizado um atentado que vitimou o juiz Giovanni Falcone, além de sua esposa e três policiais: o magistrado era muito popular no país, especialmente no sul (onde fica a Apúlia), porque estava acuando a máfia. Apesar do luto, a rodada do Italiano foi mantida sem alterações. Nenhum time da Sicília, região em que Falcone foi assassinado, participava da primeira divisão na época.
Como de praxe, o Foggia mostrou suas características ofensivas desde o apito inicial. Os times de Zeman, desde os anos 1990, já partem para cima desde o primeiro toque na bola, e avançam em bloco. Ainda que a saída contra o Milan não tenha sido frutífera, por conta de um erro de Roberto Rambaudi, os satanelli atacaram com volume nos minutos iniciais.
O habitual 4-3-3 zemaniano tinha laterais espetados – no caso, Dan Petrescu e Maurizio Codispoti –, apenas Mauro Picasso na contenção de meio-campo, com Onofrio Barone e Igor Shalimov responsáveis por abastecer Rambaudi, Baiano e Signori. O primeiro deles ficava sempre pela direita, enquanto os outros dois flutuavam e trocavam de posição a todo momento. Essa movimentação aproveitava o lado mais fraco (ou menos forte) da defesa do Milan: o direito, no qual Tassotti e Costacurta estavam em apuros, até porque Ruud Gullit, escalado como meia aberto no 4-4-2 de Capello, não contribuía tanto com a marcação.
Os 20 primeiros minutos foram de apuros para o goleiro Sebastiano Rossi, que trabalhou bem. Porém, aos 22, o Milan criou uma boa jogada. O Diavolo subiu com Frank Rijkaard, que bagunçou a marcação pelo meio, e usou a amplitude do campo com Maldini e Gullit bem abertos. Depois de um primeiro cruzamento muito longo do italiano, o craque rastafári pegou a sobra e devolveu o presente: o lateral subiu mais alto do que Petrescu e abriu o placar.
Depois que as redes balançaram pela primeira vez, o Foggia foi em busca do empate e continuou levando perigo a Rossi. Ao mesmo tempo, oferecia generosos espaços para contra-ataques e só não sofreram o segundo gol porque Van Basten perdeu o tempo de bola cara a cara com o goleiro Francesco Mancini, justo na hora em que tentava driblá-lo. Apesar disso, o jogo virou.
Em apenas três minutos, Baiano tirou dois coelhos da cartola. Ciccio recebeu na ponta esquerda, se livrou de Van Basten e, na sequência, passou por Costacurta, Tassotti e Carlo Ancelotti. Depois disso, tabelou com Rambaudi e logo enxergou o espaço nas costas de Baresi e Maldini: passou de primeira para Signori, que empatou a peleja, aos 39. Aos 41, Baiano recebeu um lançamento perfeito de Picasso e completou a pintura com maestria. O camisa 9 estava bem posicionado em relação a Tassotti, ganhou do lateral na corrida e ainda se valeu de um chute desviado pelo número 2 milanista para encobrir Rossi e virar o jogo.
O Foggia foi para os vestiários com a vitória parcial em mãos. E aí entra um elemento de lenda urbana. Diz-se que, antes do jogo, o presidente dos apulianos, Pasquale Casillo, havia oferecido um generoso bicho aos jogadores em caso de vitória. Porém, segundo boatos da época, o mandatário teria retirado a proposta no intervalo, o que teria gerado enorme descontentamento nos atletas. O mito foggiano dá conta de que os satanelli, então, voltaram ao segundo tempo amotinados, fazendo corpo mole em protesto.
Se houve sabotagem, ela foi muito bem-feita e disfarçada. Isso porque, logo aos 47 minutos, Gullit recebeu na quina direita da área do Foggia, fintou Codispoti e, sem ângulo, mandou um petardo no ângulo de Mancini. Os satanelli sentiram o gol e viram um Milan determinado partir para cima, com o ofensivo Massaro tomando o posto de Ancelotti e participando das ações ofensivas, cada vez mais envolventes.
Aos 52 minutos, pouco depois de Mancini ter evitado um belo gol de Rijkaard, Van Basten virou para o Milan. O craque holandês recebeu passe elevado de Tassotti, colocou na frente com a cabeça e ganhou no corpo do zagueiro Pasquale Padalino. Assim que entrou na área, o 9 milanista esperou a quicada da bola no gramado e desferiu um chutaço no canto. A reviravolta deixou o moral dos jogadores do Foggia no chão.
Embora estivessem desestimulados, os apulianos continuavam no seu estilo habitual: lançados ao ataque. O Milan não se fez de rogado e aproveitou uma defesa que, além de exposta, cometia erros de posicionamento, movimentação e até em gestos técnicos simples. O quarto gol saiu aos 59, depois que Salvatore Matrecano errou ao afastar um cruzamento e deixou a bola viva na entrada da área. Marco Simone a dominou e chutou mascado: Mancini estava na trajetória da pelota e a defenderia com tranquilidade, mas o desvio no zagueirão foi mortal.
O 4 a 2 no placar parecia ter acalmado os ânimos. Mas Zeman não estava satisfeito: aos 67 minutos, sacou o volante Picasso para colocar o atacante Igor Kolyvanov. O russo entrou com desejo de mostrar futebol, mas o fato de a retaguarda foggiana ter ficado ainda mais desguarnecida só ampliou a ferocidade milanista.
Aos 72, três jogadores do Foggia tentaram diminuir o espaço de Gullit ao mesmo tempo, mas Simba foi mais esperto: o rastafári notou o buraco na defesa e passou para Rijkaard, que já ocupara aquela zona. Shalimov, coitado, foi feito de bobinho: ficou entre o volante holandês, Simone e Massaro, sem saber o que Frank faria com a bola. O camisa 8 acabou rolando para a revelação rossonera, que fez o quinto.
Sexto, sétimo e oitavo gols não demoraram a sair, uma vez que o clima naquela tarde ensolarada de domingo já era de pelada entre amigos. O de número seis contou com uma patacoada do goleiro Mancini, que tentou cortar uma bola na intermediária, frente a frente com Van Basten, e errou, deixando as traves desprotegidas; o de número sete voltou a ter mais um lance de bobinho; e, por fim, o último, veio de uma jogada individual de Diego Fuser, substituto de Gullit na etapa final.
O lance do tento de Fuser ocorreu aos 87 minutos, mas, curiosamente, encerrou a partida ali mesmo. Como era a última rodada do campeonato, torcedores haviam pulado as grades que separavam as arquibancadas do estádio Pino Zaccheria do campo e esperavam o fim do duelo à beira do gramado. Quando o talentoso ala destro recebeu a bola na ponta direita, um apito matreiro enganou alguns mais exaltados, que entraram no terreno de jogo e voltaram correndo para fora dele quando notaram que a peleja não havia acabado.
Quando a jogada terminou em gol, a invasão aconteceu, enfim. E não foi contida. A turma, ensandecida, queria ficar com as camisas dos jogadores dos dois times. Os uniformes daquele jogo que seria histórico, ainda que a torcida pudesse não ter essa noção naquele momento. Collina, que não era bobo nem nada, deu o jogo por encerrado, desceu pelo túnel dos vestiários e deixou a feira livre futebolística correr a céu aberto.
Foggia: Mancini; Petrescu, Padalino, Matrecano, Codispoti; Shalimov, Picasso (Kolyvanov), Barone; Rambaudi, Baiano, Signori. Técnico: Zdenek Zeman. Milan: Rossi; Tassotti, Costacurta, Baresi, Maldini; Gullit (Fuser), Ancelotti (Massaro), Rijkaard, Donadoni; Simone, Van Basten. Técnico: Fabio Capello. Local e data: estádio Pino Zaccheria, Foggia (Itália), em 24 de maio de 1992 Gols: Baiano (39′) e Signori (41′); Maldini (22′), Gullit (47′), Van Basten (52′), Matrecano (contra; 59′), Simone (72′), Simone (74′), Van Basten (82′) e Fuser (87′) Árbitro: Pierluigi Collina (Itália).