Calciopédia
·01 de outubro de 2020
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Já imaginou tentar entrar em um país estrangeiro e ser barrado por conta de um documento que você não sabia ser falsificado? Aconteceu com Ronaldinho e Assis no Paraguai, no início de 2020. Mas, bem antes de os irmãos gaúchos terem passado por essa situação incômoda, Warley e Alberto Valentim viveram algo parecido em setembro de 2000, ao desembarcarem na Polônia. O constrangimento dos jogadores da Udinese foi o estopim de um escândalo que terminou com 13 atletas suspensos, sete clubes multados e sete dirigentes sancionados. O esquema de passaportes falsos ficou conhecido como Passaportopoli.
No fim daquele verão europeu de 2000, a Udinese – campeã da Copa Intertoto – viajou para enfrentar o Polonia Varsóvia, pela primeira fase da Copa Uefa. Assim que a delegação friulana desembarcou no aeroporto da capital polonesa, Warley e Alberto foram detidos no setor de imigração: estavam com passaportes portugueses falsificados. A polícia polonesa só liberou a dupla depois da apresentação de documentos brasileiros autênticos.
O caso repercutiu mundialmente e confirmou o que já era alvo de fortes suspeitas nos países da União Europeia que abrigavam os mais competitivos campeonatos de futebol do continente – Itália, Inglaterra, Espanha, França e Alemanha. Havia, como corria à boca miúda, jogadores que contavam com a documentação forjada para burlar a limitação de extracomunitários nos elencos.
Durante muitos anos, os campeonatos de ponta do futebol europeu estabeleceram limites para a contratação de jogadores estrangeiros. Esse entendimento mudou, por força da lei, nos últimos dias de 1995, quando o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que os futebolistas deveriam ser equiparados a qualquer trabalhador comunitário e não poderiam ser impedidos de atuarem em outro país do bloco – que, na época, tinha 15 membros, pouco mais que a metade dos atuais 27.
A sentença, conhecida como Lei Bosman, forçou a Uefa e as federações de futebol dessas nações a se adequarem. Na Itália, ficou decidido que cada clube poderia contar com até cinco jogadores extracomunitários, sendo que apenas três poderiam ser relacionados por partida. Era cristalino que um jogador que contasse com um passaporte da UE teria uma expressiva vantagem sobre os demais: como suas contratações não representavam empecilhos para os clubes, suas chances de atuar num campeonato de ponta eram maiores.
A Lei Bosman gerou um verdadeiro alvoroço em países que contaram com forte imigração europeia no passado, como o Brasil. Em tese, o fim das fronteiras na UE para trabalhadores das nações integrantes do bloco poderia facilitar a entrada de jogadores brasileiros com direito à dupla cidadania europeia nos principais campeonatos do mundo. Assim, procuradores dos atletas passaram a bater ponto em cartórios e a contratar intermediários na Europa, no intuito de conseguir obter documentos que comprovassem que seus representados atendiam aos requisitos para a obtenção de um passaporte comunitário. A corrida por avós, bisavós e tataravós portugueses, espanhóis e italianos se intensificou.
Naturalmente, a quantidade de jogadores sul-americanos com dupla nacionalidade no futebol italiano aumentou. Porém, começou a chamar a atenção o fato de alguns atletas conseguirem o passaporte europeu de maneira muito rápida, sem a burocracia inerente ao processo normal de obtenção da cidadania. A Associação Italiana de Jogadores (AIC) chegou a solicitar à FIGC, a federação de futebol nacional, que divulgasse a lista e a documentação dos neocomunitários. Não obteve sucesso.
Foi apenas no Aeroporto Frédéric Chopin, em Varsóvia, que as investigações começaram, naquele setembro de 2000. Warley e Alberto afirmaram que receberam os passaportes falsos do empresário que intermediou a sua ida para a Udinese, o que levou a Procuradoria de Údine a abrir um processo – no qual os próprios brasileiros também eram investigados, visto que o porte de documentos falsificados é crime. Outras promotorias regionais, como as de Gênova e Turim, também deram início a averiguações. Devassas similares viriam a acontecer em outros países-membros da União Europeia.
Preliminarmente, os investigadores do Passaportopoli concluíram o óbvio: visando ludibriar a lei, empresários agiam nos bastidores para obter passaportes europeus falsificados para eles. Restava saber se havia ou não a anuência dos interessados – jogadores e clubes. O fato é que, no mínimo, atletas e dirigentes das agremiações estavam mais interessados em obter vantagens pessoais ou profissionais e faziam vista grossa para a origem da documentação ou para os antecedentes dos intermediários envolvidos nos trâmites.
O caso de Álvaro Recoba é um bom exemplo disso. Em 1999, o uruguaio retornava à Inter após empréstimo ao Venezia, mas Dario Simic, Iván Córdoba, Vladimir Jugovic, Adrian Mutu e Ronaldo ocupavam os cinco postos reservados aos extracomunitários. Para tentar achar algum vínculo perdido do “chino”, Gabriele Oriali, dirigente nerazzurro, precisava de empresários especializados na América do Sul. Foi aí que Franco Baldini, então consultor de mercado da Roma, lhe indicou Barend Krausz von Praag, um sujeito excêntrico e obscuro, cheio de ligações na Argentina.
Von Praag foi eficiente. Recebeu a missão no verão europeu de 1999 e, no final da estação, num 12 de setembro, Recoba tinha seu passaporte comunitário. O documento permitiu que o uruguaio atuasse na Serie A e teve efeitos até 2006, quando rendeu ao atacante e a Oriali uma condenação na justiça comum por fraude e receptação. Na época, se descobriu ainda que até a carteira de motorista do atacante havia saído de um lote roubado do departamento de trânsito da cidade de Latina, ao sul de Roma. O empresário Von Praag, por sua vez, voltou aos holofotes por um esquema de favorecimento à prostituição e rufianismo. Ele, supostamente, unia as pontas entre acompanhantes e jogadores de futebol da Toscana.
Bem antes de tudo isso, em junho de 2001, o comitê disciplinar da FIGC entrou em ação. Puniu três jogadores da Serie B – os jovens camaroneses Thomas Job, Jean Ondoa e Francis Zé, da Sampdoria – com seis meses de gancho, e 10 atletas da elite (todos da América do Sul) com um ano de suspensão, que valeria até 30 de junho de 2002. Além do uruguaio Recoba, foram sentenciados o paraguaio Alejandro Da Silva (Udinese); o argentino Gustavo Bartelt (Roma); e os brasileiros Warley, Alberto, Jorginho Paulista (todos da Udinese), Dedé, Jeda (ambos do Vicenza), Fábio Júnior (Roma) e Dida (Milan).
A situação de Dida foi bastante sui generis. Quando o caso estourou, Adriano Galliani lembrou que o passaporte português do goleiro baiano tinha uma assinatura idêntica ao de Warley – um documento que a embaixada de Portugal na Itália informara não ter sido firmado por qualquer funcionário de sua diplomacia. Os fortes indícios de fraude fizeram com que o diretor decidisse, juntamente com o jogador brasileiro, apresentá-lo à justiça para colaborar com as investigações. Dida ainda estava inscrito na Serie A como um extracomunitário, mas acabou punido mesmo sem fazer uso da documentação adulterada.
O argentino Juan Sebastián Verón, ex-meio-campista da Lazio, foi o único considerado estranho aos fatos logo de imediato e foi absolvido já na primeira instância. O romanista Bartelt teve sua sentença anulada após recurso. Por sua vez, dirigentes – Oriali, da Inter; Baldini, da Roma; Massimo Briaschi, do Vicenza; Felice Pulici, da Lazio; Gino Pozzo, da Udinese – foram impedidos de exercer a totalidade de suas funções por um período de seis meses a dois anos. Os clubes dos jogadores envolvidos na polêmica (Inter, Lazio, Milan, Roma, Sampdoria, Udinese e Vicenza) foram condenados a pagar multas de 500 mil a 1 milhão de dólares.
Mas o imbróglio não acabava ali. O artigo 40 do regulamento de competições da FIGC, em seu sétimo parágrafo, afirmava expressamente que clubes só poderiam escalar três extracomunitários por partida e determinava uma série de punições aplicáveis em caso de infração da regra – independentemente de a violação se dar de forma dolosa ou culposa. Como os passaportes europeus dos jogadores punidos foram considerados inválidos, se verificou que, em algumas partidas os times multados teriam ultrapassado o limite estabelecido. Portanto, incidiriam em ilícito esportivo, sob a letra fria da lei. Além da sanção econômica, eles poderiam ser penalizados com perda de pontos e até mesmo o rebaixamento.
Só que os tribunais desportivos italianos se ocupavam de muitos processos importantes naqueles meses. Em paralelo ao Passaportopoli, os juízes analisavam um requerimento de suspensão do referido sétimo parágrafo do artigo 40 do regulamento da FIGC. O processo havia começado por iniciativa de jogadores extracomunitários, como Zvonimir Boban, Kakha Kaladze, Marcelo Salas, Hernán Crespo e Córdoba: seus advogados defendiam que a norma estabelecia uma discriminação ilegítima entre jogadores da UE e de outros países, constituindo uma grave violação do seu direito de competir em pé de igualdade por um emprego. Para os defensores, a lei estava em desacordo com as disposições do estatuto da FIGC, o ordenamento jurídico italiano e acordos internacionais.
A Corte Federal da FIGC acatou o pedido e derrubou a norma, uma vez que havia jurisprudência para isso. Uma série de decisões anteriores, tanto da justiça comum quanto da desportiva, terminaram sendo deliberadas com o mesmo entendimento – sendo a mais notória delas a que determinou o fim da diferenciação entre comunitários e extracomunitários em competições da Federação Italiana de Basquete. A sentença do foro futebolístico foi proferida em maio de 2001 (portanto, antes dos vereditos do Passaportopoli) e acabou por abrandar todas as punições seguintes. Como o sétimo parágrafo do artigo 40 foi suprimido do regulamento, nenhuma equipe perdeu pontos.
Sucessivamente, Dida e Recoba tiveram sua pena reduzida. Além disso, como a suspensão só valia em território italiano, alguns desses jogadores foram emprestados para o futebol brasileiro: casos do próprio Dida (Corinthians) e de Warley (Grêmio), Dedé (Vasco), Jorginho Paulista (já estava no Boca Juniors e passou ao Cruzeiro) e Fábio Júnior (que trocou a Raposa pelo Palmeiras).
Embora não exista, até hoje, qualquer limite para o número de extracomunitários em elencos da Serie A, a FIGC estabeleceu barreiras para que os clubes contratem jogadores sem passaporte da UE a cada temporada. Se os times podem adquirir sem restrições os não-comunitários que já atuem na Itália, valem as seguintes regras para aqueles provenientes do exterior: equipes que terminarem a campanha anterior vinculados a, no máximo, um jogador de fora da comunidade europeia podem comprar até três oriundos de sociedades do estrangeiro nas janelas de verão e/ou inverno; as que tinham dois podem acertar com mais dois, sendo que um precisa ser cedido para um time de fora da Itália; as que contavam com mais de dois precisam vender um para agremiações de outros países e só podem acertar com o outro caso ele seja representante da seleção de seu país.
Eis, portanto, porque a Juventus necessitava que Luis Suárez ganhasse passaporte comunitário para ser contratado em 2020. Como o clube terminou a temporada 2019-20 vinculado a sete extracomunitários e já havia acertado com Arthur e Weston McKennie, sua cota de novas chegadas do estrangeiro terminara. A negociação não foi concluída porque a documentação não ficaria pronta em tempo hábil e o atacante acabou firmando com o Atlético de Madrid, mas é possível dizer que a Velha Senhora escapou – ao menos por enquanto – de estar no centro de um novo escândalo. Afinal, a polícia e a justiça italiana investigam os fortes indícios de fraude nos exames linguísticos do uruguaio na Universidade para Estrangeiros de Perugia, que visariam a aceleração dos trâmites para a obtenção da cidadania italiana pelo atleta. Como se vê, um novo Passaportopoli ainda pode acontecer.