Trivela
·09 de setembro de 2021
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·09 de setembro de 2021
Guus Hiddink permaneceu à beira do campo por quase 40 anos. E a longa jornada do treinador foi suficiente para que ele construísse uma carreira única no futebol. Sim, o holandês conquistou títulos que justificaram sua reputação, com destaque à Champions de 1987/88 à frente do PSV. Também dirigiu alguns dos clubes mais poderosos do mundo, em várias ligas de peso, e lapidou craques. Porém, sua imagem mais forte será a do comandante de campanhas marcantes em Copas do Mundo. Levou Holanda e Coreia do Sul a semifinais, além de ter dirigido a Austrália em sua volta aos Mundiais depois de 32 anos. Também orientou uma Rússia surpreendente em Eurocopa e alimentou sonhos da China a Curaçao. Sem dúvidas um gigante, que se despede do esporte aos 74 anos, com o anúncio de sua aposentadoria nesta quinta-feira.
A última aventura de Guus Hiddink como treinador talvez garantisse sua maior façanha. Em 2020, o holandês assumiu o comando de Curaçao, na tentativa de levar a seleção pela primeira vez a uma Copa do Mundo. Todavia, sua missão duraria pouco, atrapalhada depois que o veterano se adoeceu com a COVID-19. Dirigidos pelo assistente Patrick Kluivert, seus jogadores ainda fizeram bonito nas fases iniciais das Eliminatórias e quase derrubaram o Panamá. Porém, os curaçauenses não chegariam ao octogonal final e também desistiram da Copa Ouro por conta da pandemia.
Assim, Guus Hiddink preferiu sair de cena sem cumprir o grande objetivo. O treinador conversou com o presidente da federação e avaliou que era melhor uma renovação no comando, botando alguém que chegasse com mais gás em busca da Copa de 2026. Ficam os ensinamentos a uma seleção em crescente, sobretudo depois de se abrir a jogadores nascidos na Holanda que tenham dupla nacionalidade. Não será surpresa se Curaçao chegar ao Mundial num futuro não tão distante, ainda mais com o aumento de vagas para o torneio.
“Não estive ativo nos últimos tempos por causa da COVID-19. Avaliei com o presidente a situação e chegamos à conclusão de que é melhor parar, porque eles seguirão uma nova trajetória. Vou encerrar minha carreira totalmente. E não farei como Advocaat. Não, não…”, brincou o treinador, mencionando o colega e compatriota Dick Advocaat, que anunciou a aposentadoria para logo depois mudar de ideia e virar o novo treinador do Iraque.
Hiddink dedicou mais de cinco décadas de sua vida ao futebol. A carreira como jogador foi modesta. O meio-campista deu seus primeiros passos com o pequeno Varsseveld, de sua cidade natal. Em 1967, aos 21 anos, estreou na Eredivisie através do De Graafschap. Também teve uma rápida passagem pelo PSV entre 1970 e 1972, mas permaneceu como reserva e retornou ao De Graafschap. Atuou ainda pelo NEC e depois viveu suas primeiras experiências no exterior através da NASL, a extinta liga dos Estados Unidos, onde jogou por Washington Diplomats e San Jose Earthquakes. Já em 1981/82, acumulou sua terceira passagem pelo De Graafschap, para se aposentar aos 36 anos – quando já fazias as vezes de auxiliar técnico.
Se o PSV representa pouco na trajetória de Hiddink como jogador, seria no clube de Eindhoven que sua carreira como treinador desabrocharia. O recém-aposentado meio-campista ganhou o posto de assistente em 1983, permanecendo por quatro anos no cargo. Em março de 1987, assumiu a equipe que perseguia o Ajax na Eredivisie. Conseguiu uma reviravolta e conquistou o título nacional, que permitiria logo depois o seu primeiro grande feito: o título da Champions em 1987/88, numa temporada que ainda valeu a tríplice coroa aos Boeren. Não seria uma campanha empolgante, com uma sequência de sete empates a partir das oitavas de final, que valeram classificações pelos gols fora até a decisão e o título sobre o Benfica nos pênaltis. Ainda assim, era uma equipe muito competitiva e forte coletivamente, que ainda ganhou a adição de Romário no segundo semestre de 1988. Aquele PSV ainda seria tricampeão holandês.
Hiddink permaneceu no PSV até 1990. A partir de então, o treinador botaria o pé na estrada, em passagens não tão frutíferas por Fenerbahçe e Valencia. Mesmo assim, manteve uma reputação considerável para assumir a seleção holandesa em 1995. A campanha na Euro 1996 seria fraca e marcada por divisões internas no elenco, com discussões inclusive sobre uma cisão racial. Apesar disso, Hiddink seguiria em frente para a Copa de 1998 e apararia as arestas para formar uma equipe inesquecível a partir das individualidades, impulsionada também com as chegadas dos auxiliares Johan Neeskens, Ronald Koeman e Frank Rijkaard. A Oranje protagonizou uma caminhada maiúscula na França, que parou no Brasil durante as semifinais, mas rendeu grandes momentos e um lugar especial na história do torneio.
Em alta, Hiddink assumiu um Real Madrid que tinha acabado de ser campeão europeu e não durou uma temporada completa, mesmo com a conquista do Mundial Interclubes. Também não deu certo com o Betis. Isso até surgir a oportunidade de dirigir a Coreia do Sul às vésperas da Copa do Mundo de 2002. Com a vaga assegurada aos anfitriões, Hiddink viraria sinônimo de futebol no país. A arbitragem favoreceu os sul-coreanos, é verdade, mas a equipe também se empenhou bastante e apresentou virtudes coletivas para bater de frente com as potências no Mundial. A quarta colocação, hoje em dia, parece irrepetível pela Coreia do Sul. Hiddink ganhou cidadania local e até mesmo um dos estádios da Copa foi rebatizado em sua homenagem.
Hiddink voltou ao PSV para ampliar ainda mais sua lista de feitos entre 2002 e 2006. O treinador emendou mais três títulos nacionais e levou os Boeren às semifinais da Champions, quando deram trabalho ao Milan em 2005/06. E o detalhe é que, concomitantemente, Hiddink passou a dirigir a seleção da Austrália em julho de 2005. Gravaria também seu nome na história do novo país, ao bater o Uruguai na repescagem e encerrar um hiato em Mundiais que durava desde 1974. Seria uma campanha igualmente marcante, com os Socceroos avançando na fase de grupos e dando muito trabalho à futura campeã Itália nas oitavas de final. Outra nação trataria Hiddink como um personagem bastante querido do esporte.
A próxima parada de Hiddink foi a Rússia. Classificou a seleção para a Euro 2008 e provocou uma sensação no torneio, com o time de futebol agressivo que surpreendeu até as semifinais. Mais uma façanha à sua lista, considerando que os russos nunca repetiram uma campanha tão boa em seu período independente. E as ligações com Roman Abramovich levaram Hiddink a dirigir o Chelsea após a queda de Felipão em 2008/09. A melhora de desempenho foi notável e os Blues conquistaram a FA Cup. O holandês seria substituído por Carlo Ancelotti logo depois, mas conquistou o respeito dos “senadores” nos vestiários londrinos e também se fez querido pela torcida, mesmo com poucos meses no cargo.
Somente neste momento é que a carreira de Guus Hiddink perdeu fôlego. Contratado pela Turquia, o treinador não fez um bom trabalho e não conseguiu levar o país à Euro 2012. Depois, aceitaria uma proposta do Anzhi Makhachkala, onde sobrava dinheiro e faltava organização, sem que o projeto megalomaníaco realmente decolasse no Daguestão. Já em 2014, sucedeu Louis van Gaal na direção da seleção holandesa, mas enfrentou o ponto baixo de sua trajetória. A equipe não manteve o bom nível visto na Copa de 2014 e Hiddink deixaria o cargo no meio da campanha qualificatória para a Eurocopa. Danny Blind conseguiu ser pior ainda na sequência e o time se ausentaria do torneio continental.
Próximo dos 70 anos, Hiddink já tinha ensaiado sua aposentadoria quando estava no Anzhi. Porém, não recusou outro convite de Roman Abramovich para guiar o Chelsea, desta vez após a demissão de José Mourinho. O interino ficou até o fim da temporada 2015/16 e emendou uma sequência invicta, mas no máximo levou os Blues até o meio da tabela, após um início bastante ruim do clube naquela Premier League. Já em 2018, voltou à Ásia para comandar a China Sub-21 por um ano, sem causar impacto no projeto para as Olimpíadas de 2020. Seria seu penúltimo trabalho, até Curaçao marcar sua despedida do futebol.
Hiddink não será lembrado necessariamente como um treinador revolucionário ou como um mentor do futebol ofensivo, como tantos compatriotas. Foi muito mais competente pelo senso de organização de suas equipes, como bem definiu o amigo Felipe dos Santos Souza. Contudo, essa sua capacidade na casamata já o coloca como o maior comandante de todos os tempos do PSV, além de ter repetido feitos com diferentes seleções. É o suficiente para que Hiddink seja tratado com reverência em vários países e figure em algumas listas de maiores técnicos da história. Sua trajetória fala por si e, depois de tantas experiências, o veterano poderá desfrutar da merecida aposentadoria. Nunca deixará de ser uma referência, sobretudo em Copas do Mundo.