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·07 de dezembro de 2020

Muito antes de ser presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez ajudou o clube de seu bairro a ser campeão nacional

Imagem do artigo:Muito antes de ser presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez ajudou o clube de seu bairro a ser campeão nacional

O Uruguai guarda seu luto, desde o último domingo, pela morte do presidente Tabaré Vázquez. À frente do país ao longo de dez anos, em dois mandatos distintos, o político foi um nome importante à agenda progressista adotada no governo durante as últimas décadas. Vítima de um câncer no pulmão, o médico oncologista permaneceu na presidência até o último mês de março, quando se encerrou seu segundo período no poder. E uma das localidades que mais lamentam a perda é La Teja, um bairro humilde de Montevidéu. A região industrial não apenas viu a ascensão do garoto nascido em uma família operária. Ela também conheceu os diferentes lados de Vázquez, inclusive o apaixonado por futebol. Antes de ser presidente do Paisito, ele dirigia o Progreso, principal clube da vizinhança. E, durante a sua gestão, os Gauchos conseguiram uma façanha até hoje inigualável: o título de campeão uruguaio, faturado em 1989, mesmo ano em que o político ganhou as eleições à prefeitura de Montevidéu.

A ligação de Tabaré Vázquez com o Progreso se dá logo no surgimento do clube, em 1914. A equipe foi idealizada por membros do sindicato dos pedreiros, muitos deles ativos no movimento anarquista. O nome do time, aliás, fazia referência ao conceito de “progresso” – ainda que a Rua Progresso, onde se viveram aqueles primórdios, também tenha consequência direta na escolha. E uma das lideranças na nova agremiação era José Vázquez, avô de Tabaré. Além de calçar chuteiras e participar das primeiras competições, Don José também exerceu o cargo de presidente naquele princípio. A fundação oficial do Progreso, de qualquer maneira, se dá em 1917 – quando o time se juntou à Associação Uruguaia de Futebol. Disputava a terceira divisão, com o primeiro Vázquez em campo.


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O Progreso adotou suas cores atuais, o amarelo e o vermelho, em 1927 – uma referência à bandeira da Catalunha, de onde vinha parte dos imigrantes que ajudaram em sua fundação. Cinco anos depois, o clube abraçaria também a transição ao profissionalismo, pela qual o futebol uruguaio passava naquele momento. O time ainda bateu na trave algumas vezes, até chegar à primeira divisão do Campeonato Uruguaio em 1945, mas caiu logo em seguida. Durante as décadas posteriores, a história dos Gauchos del Pantanoso se resumiu entre a segunda e a terceira divisão. Isso até Tabaré Vázquez ajudar a mudar essa trajetória a partir dos anos 1970.

Filho de um operário da refinaria do bairro, Tabaré Vázquez chegou a fundar seu próprio time durante a adolescência na década de 1950. O rapaz atuava como goleiro reserva do Arbolito, um clube que chegou a ter sua relevância em La Teja além do futebol. Para ajudar no sustento da família, ele conciliava os estudos com diversos empregos – foi carpinteiro, vendedor e vidraceiro, além de trabalhar na administração e no laboratório de uma empresa que produzia vinhos e licores. Foi neste momento que ingressou na faculdade de medicina e se especializou em oncologia. Na sede do Arbolito, abriu uma clínica à sua vizinhança, onde ganhou notoriedade por atender centenas de pessoas de graça a cada semana. Assim, passou a se envolver também com o Progreso, ligado à sua família e do qual era torcedor.

Eleito vice-presidente do Progreso em 1978, Tabaré Vázquez chegou ao cargo máximo um ano depois. O clube se notabilizava não apenas por disputar as divisões de acesso do Campeonato Uruguaio, mas também por ter uma sede social onde funcionava um centro cultural e um café, importantes ao bairro. Ainda assim, o futebol conseguiu uma guinada naquela virada de década. Já em 1979, os Gauchos conquistam o acesso à primeira divisão do Campeonato Uruguaio após 33 anos de ausência. Uma grande festa tomaria o Estádio Centenario, onde o clube disputou a promoção, se estendendo às ruas de La Teja.

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A partir de então, o Progreso se tornou um costumeiro figurante no Campeonato Uruguaio. E essa ascensão ajudou que Tabaré Vázquez promovesse algumas melhorias nas estruturas do clube. Os aurirrubros reformaram as instalações do Parque Paladino, o seu estádio. E o sucesso não os afastou de suas raízes populares. Prova disso foi a criação de um refeitório, para atender as crianças carentes da vizinhança em sua sede social. Durante os últimos anos da ditadura militar, os Gauchos tinham participação ativa na organização da vida local, promovendo doações de comida e outras ações. O futebol fortalecia esses laços.

Durante os primeiros anos da década de 1980, o Progreso frequentou a metade inferior da tabela do Campeonato Uruguaio. Entretanto, um dos primeiros sinais do salto veio em 1985, quando os aurirrubros conquistaram o Torneio Competência, uma competição oficial da federação que antecedia o Campeonato Uruguaio. A equipe sobrou naquela campanha, com oito vitórias conquistadas em 12 partidas, batendo inclusive Peñarol e Nacional. Seu técnico era Roberto Fleitas, responsável também pelo acesso em 1979, que depois assumiria a seleção uruguaia na Copa América de 1987 e seria campeão da Libertadores em 1988 à frente do Nacional. Na sequência de 1985, os Gauchos terminaram na sexta colocação da liga nacional e bateram na trave na Liguilla Pré-Libertadores, que designava os representantes do país na competição continental.

Outro passo gigantesco foi dado pelo Progreso em 1986. Os pequeninos repetiram o sexto lugar no Campeonato Uruguaio e foram vice-campeões do Torneio Competência, conseguindo faturar a segunda colocação na Liguilla, que os levou à Libertadores em 1987. Os aurirrubros participariam da chave com Peñarol, Alianza Lima e San Agustín, chegando a contabilizar uma vitória e três empates. Levavam 30 mil torcedores ao Centenário, um feito e tanto a uma agremiação de suas proporções. Um de seus empates aconteceu contra o Peñarol, que avançou de fase com a primeira colocação e terminou sendo o campeão continental naquele ano.

O trabalho de Tabaré Vázquez como dirigente se tornava mais conhecido, ao mesmo tempo em que ele conciliava sua carreira e sua vida política. Além de professor da Universidad de la República, em 1985, na mesma faculdade de medicina, ele se tornou diretor da área de radioterapia no Departamento de Oncologia. Tinha uma especialização na França e participava de frequentes congressos, além de coordenar trabalhos científicos. Já sua filiação política ao Partido Socialista se deu durante os últimos anos da ditadura, integrando o comitê central da legenda após sua regularização.

Curiosamente, antes de tentar se candidatar a algum cargo público, Tabaré Vázquez quis ser presidente da Associação Uruguaia de Futebol. Chegou a presidir a Liga Universitária em 1984, mas nunca conseguiu se sentar na cadeira máxima da entidade futebolística. Segundo afirmações públicas do próprio Vázquez, havia um veto ao seu nome nos bastidores, por conta de suas ligações com o Partido Socialista e com os movimentos de esquerda. O responsável por barrá-lo seria ninguém menos que Julio María Sanguinetti, presidente do país eleito democraticamente em 1985, que usou sua influência junto ao Peñarol. Sanguinetti negava tal interferência, garantindo que Tabaré Vázquez nunca chegou ao poder na AUF por conta das disputas entre clubes grandes e pequenos, mesmo participando por três vezes das eleições na entidade.

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Sem sucesso na federação, Tabaré Vázquez cada vez mais se aproximou das lideranças da Frente Ampla, que reunia agremiações de esquerda no Uruguai. O Progreso seguia sua própria trajetória no Campeonato Uruguaio e chegou a flertar com o rebaixamento em 1988. Mas a queda de desempenho seria revertida na temporada seguinte, com o inédito e inesperado título nacional. Seria uma reviravolta e tanto a protagonizada pelos aurirrubros, impensável campeão de um bairro proletário.

Naqueles anos 1980, o Campeonato Uruguaio indicava uma abertura maior para que o título acabasse além do duopólio formado por Nacional e Peñarol. Depois que o Defensor quebrou a hegemonia em 1976, no primeiro título da era profissional que não ficou com os gigantes, a década seguinte variou bastante o número de campeões. Ainda que tricolores e aurinegros ganhassem seus últimos títulos na Libertadores, não conseguiam exercer o mesmo domínio nas competições domésticas, em tempos nos quais a debandada dos melhores jogadores à Europa se ampliava. Assim, chegou a vez de Central Español (1984), Defensor (1987) e Danubio (1988) erguerem a taça. Até que o Progreso alcançasse o topo em 1989.

Aquela seria uma edição acidentada do Campeonato Uruguaio. Por conta das dificuldades financeiras dos times, o calendário teve atrasos, assim como houve interferência da Copa América e das Eliminatórias para a Copa de 1990 na organização dos jogos. Desta maneira, a liga nacional seria realizada em turno único, disputada por 13 participantes. O Progreso consumou sua façanha com uma campanha praticamente perfeita. Conquistou nove vitórias nas 12 partidas disputadas, com apenas uma derrota sofrida. Anotou 18 gols e sofreu apenas oito. Foram 20 pontos conquistados, em tempos de dois pontos por vitória, encerrando a competição com cinco de vantagem sobre Peñarol e Nacional – ambos derrotados naquelas semanas de glória em La Teja.

O próprio comandante do Progreso campeão era um personagem pouco usual. Ex-jogador da seleção uruguaia, Saúl Rivero tinha apenas 33 anos quando foi convidado para dirigir os aurirrubros. Na temporada anterior, tinha sido assistente de Roberto Fleitas no Nacional que faturou Libertadores e Mundial em 1988. Ao seu lado, seu braço direito era Gonzalo Barreiro, outro jovem, de 32 anos. O preparador físico havia trabalhado também com Fleitas, mas na seleção uruguaia que faturou a Copa América em 1987. Com eles, os Gauchos haviam terminado no modesto 11° lugar no Torneio Competência de 1989, mas a ascensão não demorou a ocorrer.

O elenco deu liga após a paralisação aos compromissos da seleção e deslanchou quando o Campeonato Uruguaio realmente começou. Uma das grandes figuras era Jhonny Miqueiro, atacante trazido do Sud América que se transformou em artilheiro da competição, com sete gols. O jovem chegou a ser convocado para a Celeste às vésperas da Copa do Mundo, mas não integraria o elenco na Itália. Apesar da fama repentina, o goleador nunca deslanchou e veria sua carreira limitada a clubes de menor expressão. Outros companheiros conseguiriam dar saltos maiores.

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Cria da base do Progreso, Pedro Pedrucci era o destaque no meio-campo. Já tinha passado pelo Nacional e até mesmo pelo Campeonato Francês, quando retornou para erguer a taça em 1989. Depois disso, o veterano juntaria seu pé de meia principalmente no futebol japonês, também vestindo a camisa do Peñarol. Foi outro a defender a seleção uruguaia. Já atrás, Leonardo Ramos tornou-se uma das grandes revelações dos aurirrubros. O defensor atuou por clubes como Vélez, Estudiantes e River Plate, além do Peñarol. Esteve presente na Copa América de 1997 com a Celeste. Por fim, o goleiro Leonel Rocco foi reserva na Copa América de 1991, passando depois pelo Nacional.

Dentro de campo, o Progreso exibia um futebol aguerrido e de muita força física, “à uruguaia”. Porém, a maneira como os jogadores se entendiam e lutavam uns pelos outros também fez toda a diferença à campanha histórica. “O que mais me lembro eram as reuniões com todo o elenco, inclusive os juniores, depois dos treinamentos. Isso criou um grupo muito unido”, declarou Luis Berger, meio-campista daquele time, em entrevista ao Ovación. Sempre faziam churrascos para confraternizar.

“Como em todo começo, não pensávamos em chegar ao título. Mas ganhamos dos grandes e vimos que podia ser. Quando faltavam quatro ou cinco rodadas, nos dissemos que não caíamos mais. Ganhamos do Nacional e do Peñarol em casa. Foram festas inesquecíveis. Neste momento, os grandes começaram a sair do Centenario, por isso também aconteceram títulos de outras equipes”, complementa Pedro Pedrucci.

Quando o Progreso conquistou o Campeonato Uruguaio, Tabaré Vázquez não vivenciava mais o dia a dia do clube. Também em 1989, o presidente aurirrubro concorreu à prefeitura de Montevidéu pela Frente Ampla. Enquanto os Gauchos emendavam suas vitórias na liga nacional, Vázquez visitava os bairros da capital em campanha. Seria eleito em 26 de novembro de 1989, no primeiro triunfo expressivo da esquerda uruguaia nas urnas. Em 14 de dezembro, o Progreso se coroou campeão ao empatar por 1 a 1 com o Central Español.

Como estava licenciado e não viu as primeiras vitórias do Progreso nas arquibancadas, Tabaré Vázquez avaliou que sua ausência “dava sorte” e manteve a superstição até o desfecho do título. No dia da partida decisiva contra o Central Español, o futuro prefeito preparava seu gabinete em reuniões realizadas em um hotel. Assim, ouviu apenas pelo rádio o duelo final. Quando sintonizou a transmissão, os adversários abriram o placar e Vázquez decidiu não escutar mais. Depois, Pedro Pedrucci empatou cobrando pênalti e durante um encontro com o Ministro da Educação de Angola, os assessores avisaram o placar de 1 a 1, que dava a taça aos Gauchos. O político então fechou sua agenda e foi ao Parque Palermo, o estádio do Central, onde se iniciavam os festejos rumo a La Teja.

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“Naquela tarde, saímos da concentração no Paso de la Arena e já se formou uma caravana rumo ao estádio do Central, que estava cheio. A volta foi incrível. Todo o bairro nos esperava. Só os jogadores puderam entrar na sede, nem os nossos familiares conseguiram”, relatou Berger, ao Ovación. “Fizemos um grande campeonato. Tomamos cada partida como uma final. Todos tinham grandes equipes. Os grandes vinham de ganhar a Libertadores. Nós estávamos sempre firmes, como a chama da refinaria em La Teja. Todo o bairro nos apoiava”

Naquele momento, Tabaré Vázquez já era substituído interinamente por Nelson Hermida na presidência do clube e deixaria de vez o comando dos aurirrubros para trabalhar na prefeitura. Não participaria do planejamento à campanha na Libertadores de 1990, após os Gauchos encerrarem a Liguilla na segunda colocação. O time perdeu o técnico Saúl Rivero, que assumiu o Nacional em 1990. Sob as ordens de Walter Roque, o Progreso faria um papel digno no torneio continental, alcançando os mata-matas.

O Progreso manteve a base campeã de 1989 – com Leonel Rocco, Leonardo Ramos, Pedro Pedrucci, Jhonny Miqueiro, Luis Berger e outros destaques. Num grupo no qual apareciam clubes uruguaios e venezuelanos, os aurirrubros terminaram na primeira colocação, à frente do compatriota Danubio. A trajetória se encerraria nas oitavas de final, com uma derrota por 2 a 0 e um empate por 2 a 2 diante do Barcelona de Guayaquil – que viria a ser vice-campeão naquela edição da Libertadores.

O sucesso do Progreso não duraria tanto. O clube acabou rebaixado em 1995, passando as duas últimas décadas na gangorra entre a primeira e a segunda divisão. Em algumas das oportunidades nas quais conquistou o acesso, agarrou-se à sua gente, treinado novamente por Saúl Rivero na promoção de 2006 e pelo ex-lateral Leonardo Ramos em 2012. Já em 2019, o Progreso terminou o Campeonato Uruguaio na quarta colocação, retornando à Libertadores após 30 anos – apesar da precoce eliminação diante do Barcelona de Guayaquil nas preliminares. Seu técnico era Leonel Rocco, o goleiro titular na campanha de 1989.

Tabaré Vázquez, por sua vez, ascendeu politicamente. Manteve-se como prefeito de Montevidéu até 1994 e cumpriria dois mandatos como presidente do Uruguai – de 2005 a 2010 e de 2015 a 2020. Mesmo ocupando a cadeira mais importante do país, não deixou de frequentar as arquibancadas do Progreso em algumas ocasiões (até na segundona) ou mesmo de participar dos eventos do clube. Em 2017, esteve presente nos festejos pelo centenário. O presidente aurirrubro nos últimos anos é Fabián Canobbio, ex-meio-campista criado na base, que defendeu depois clubes como o Peñarol, o Valencia e o Celta, além da seleção. Como nos anos áureos do Progreso, é um filho de La Teja que entende a importância da agremiação e segue trabalhando pelo vínculo do time com sua vizinhança, sobretudo nas categorias de base e no trato social.

Durante seus últimos meses no governo, Tabaré Vázquez lutou contra o câncer – doença que já tinha matado seu pai e um irmão. Apesar disso, cumpriu seu mandato até o final, passando a faixa em 1° de março. As mensagens de apoio do Progreso aconteceram desde o anúncio da doença, quando os jogadores entraram em campo com uma faixa desejando força ao ex-dirigente. Repetiram-se nas arquibancadas, enquanto os portões continuaram abertos no Campeonato Uruguaio, e foram colocadas até na frente da casa de Vázquez. Já neste domingo, diante da morte, o Progreso publicou uma mensagem expressando a “imensa dor pelo vizinho que nunca se esqueceu do bairro e que levou ao mais alto o clube de seus amores”. O presidente do Uruguai que La Teja conheceu antes de todos.

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