Trivela
·02 de julho de 2021
In partnership with
Yahoo sportsTrivela
·02 de julho de 2021
A seleção da Suíça é o retrato de um país multicultural. As influências de Alemanha, França e Itália são claras por questões geográficas, assim como os imigrantes também preponderam na composição do elenco – sobretudo aqueles que saíram dos Bálcãs e da África. O que por vezes não transparece é a relação que o time suíço possui com a própria Espanha, adversária nestas quartas de final da Eurocopa. E a ligação com os espanhóis se reflete tanto no passado quanto no presente do futebol. Ricardo Rodríguez e Loris Benito são os representantes desse contingente no plantel atual, encarando a seleção do país de seus pais na Euro 2020. Desde a Copa de 1994, todas as dez participações da Suíça nas competições internacionais tiveram pelo menos um futebolista que é filho ou neto de espanhóis.
Segundo as estatísticas divulgadas pelo governo espanhol, a Suíça é o décimo país com o maior número de emigrantes saídos da Espanha na atualidade. Em 2020, cerca de 125 mil cidadãos espanhóis viviam no país da Europa Central – entre aqueles que nasceram em território espanhol, mas também seus descendentes com nacionalidade espanhola. E esse agrupamento tem representatividade entre os imigrantes na própria Suíça. Fica abaixo apenas dos grupos com nacionalidade francesa, alemã e italiana, bem como das comunidades de portugueses e de sérvios ou de kosovares, que se refugiaram durante as guerras na Iugoslávia.
Tal movimento migratório da Espanha teve início na década de 1950, com a saída da população da zona rural em busca de oportunidades de emprego na indústria suíça. Como a Suíça se manteve neutra durante a Segunda Guerra Mundial, as fábricas locais estavam em funcionamento pleno durante a reconstrução da economia europeia no período. Enquanto isso, a Espanha vivia uma crise econômica e ainda lidava com o isolamento provocado pela ditadura franquista. A Suíça receberia principalmente imigrantes saídos da Galícia, que compõem cerca de 60% da comunidade espanhola no país. Em consequência, o galego é a quinta língua estrangeira mais falada por lá, além dos idiomas oficiais.
De início, os imigrantes espanhóis se concentravam na região da Suíça em que a língua predominante é o alemão, por conta da forte industrialização. Isso dificultava a própria integração dessas pessoas, sobretudo pela barreira idiomática. Com o passar das décadas, essa população começou a buscar as áreas nas quais se falam francês ou italiano, o que auxiliava um pouco mais na aproximação. De qualquer maneira, o enraizamento desses imigrantes se tornou maior a partir da primeira geração nascida em território suíço. E são esses descendentes que passaram a se destacar também no futebol, encontrando no esporte uma maneira de se integrar à sociedade.
Os jogadores suíços de origem espanhola começaram a despontar principalmente durante a década de 1990. Um dos primeiros a se destacar foi Martín Rueda. O zagueiro nasceu em Zurique, em 1963, filho de imigrantes andaluzes que se estabeleceram na cidade. O defensor deu seus primeiros passos no Grasshoppers e viveu seu auge no Luzern durante o início dos anos 1990. Ganhou sua primeira convocação já depois dos 30 anos e seria reserva na Copa do Mundo de 1994, que marcava o retorno da Suíça a uma competição internacional após 28 anos. Curiosamente, os helvéticos seriam eliminados pelos espanhóis nas oitavas de final.
Outro nome importante do futebol suíço na década de 1990 foi Ramón Vega, filho de madrilenos que nasceu em Olten, cidade na parte alemã do país. Oito anos mais jovem que Rueda, o zagueiro começou a carreira no Grasshoppers e ganhou a primeira convocação em 1993. Não disputou a Copa do Mundo no ano seguinte, mas vestiu a camisa 15 na Euro 1996. O beque teve uma trajetória respeitável também no exterior. Jogou no Tottenham por três temporadas, além de defender também por Cagliari e Celtic. Depois de sua aposentadoria, Vega chegaria a abrir uma escolinha de futebol em Marbella, na Espanha.
Nas seleções de base, a Suíça ainda contou com Gerardo Seoane durante os anos 1990. O zagueiro nasceu em Lucerna e representava essa comunidade galega no país. Inclusive, chegou a se transferir para o segundo time do Deportivo de La Coruña e permaneceu no Riazor por quatro anos, de 1998 a 2002, sem alcançar a equipe principal. Seoane, entretanto, faria mais fama depois de pendurar as chuteiras. O treinador conquistou as últimas três edições do Campeonato Suíço à frente do Young Boys e na próxima temporada trabalhará na Bundesliga, à frente do Bayer Leverkusen. O técnico domina seis línguas diferentes, incluindo o galego.
Também houve quem fizesse o caminho contrário. Luis Cembranos nasceu em Lucerna e, durante sua adolescência, voltou com a família para a Espanha. O meio-campista começou a carreira na base do Barcelona, mas ganhou poucas chances na equipe principal. Teria mais sucesso no Espanyol e principalmente no Rayo Vallecano, onde viveu sua melhor fase. Em 2000, ganharia uma chance de defender a seleção da Espanha num amistoso contra a Polônia. Depois de pendurar as chuteiras, virou treinador. Já as seleções de base espanholas contaram com José Luis Deus, atacante nascido em Lausanne, que voltou à Espanha na juventude e despontaria no Deportivo de La Coruña.
Apesar de Rueda e Vega, foi mesmo na década de 2000 que a comunidade espanhola na Suíça ganhou seus principais representantes na seleção. Ricardo Cabanas foi o primeiro deles. Quem se mudou a Zurique foi seu avô, saído da Galícia, levando o restante da família. O pai, também chamado Ricardo, cresceu no novo país e atuou profissionalmente em clubes da região. Ao lado de seus irmãos, até fundou um time suíço chamado Club Deportivo Galícia. Já o Ricardo filho fez parte da primeira geração da família nascida na própria Suíça e virou um dos grandes ídolos do Grasshoppers a partir de 1997.
A estreia de Ricardo Cabanas na seleção suíça aconteceu em 2000. O meia somou 51 partidas com os helvéticos, presente em três competições internacionais – a Euro 2004, a Copa de 2006 e a Euro 2008. E o mais curioso é que ele defenderia outra seleção paralelamente, graças às suas origens. Anualmente, as comunidades autônomas da Espanha ganham o direito de disputar um amistoso com selecionados locais. País Basco e Catalunha são os mais presentes nestas partidas, mas times de outras regiões também já foram organizados. Cabanas integraria exatamente a seleção da Galícia, com três aparições pela equipe. O meio-campista enfrentou Uruguai, Equador e Irã nessas ocasiões especiais.
E depois de Cabanas surgiu outra importante figura da comunidade espanhola na seleção da Suíça: Philippe Senderos. O zagueiro integra duas comunidades de imigrantes diferentes, já que seu pai é espanhol e sua mãe é sérvia. Para aumentar o caldeirão cultural, ele se casou com uma mulher inglesa de raízes iranianas. Julián Senderos, seu pai, deixou um pequeno povoado na Espanha para trabalhar no setor de hotelaria. Passou primeiro por Londres, antes de se estabelecer em Genebra. E o esporte seria um caminho para auxiliar os filhos, nascidos na cidade, em suas integrações. Se o futebol era a modalidade preferida de Philippe, o irmão Julien jogou basquete profissionalmente.
Philippe Senderos surgiu no Servette e, aos 18 anos, se transferiu para o Arsenal. A camisa de sua estreia pelos Gunners foi doada à prefeitura da cidade onde seu pai nasceu, na região de Castela. Já a estreia na seleção principal aconteceu em 2005. Foram 11 anos na equipe nacional e 57 partidas disputadas. Esteve na Euro 2008 realizada no país, assim como em três Copas do Mundo de 2006 a 2014. O beque aposentado em 2019 ainda teve a oportunidade de jogar pelo Valencia, mas sua estadia em La Liga seria brevíssima. Acabou virando exemplo para outros tantos garotos de origem espanhola.
Durante a última década, o número de jogadores com raízes espanholas nas seleções suíças de base se tornou ainda maior. Ricardo Rodríguez é um grande exemplo. O lateral seria um dos destaques na conquista do Mundial Sub-17 de 2009, o maior feito dos suíços nas categorias formativas. O salto para o elenco principal aconteceu em 2011. Rodríguez pôde disputar os Jogos Olímpicos de 2012, antes de representar os helvéticos nas duas últimas Copas e nas duas últimas Eurocopas. Sua qualidade para bater na bola o colocou como uma referência técnica do time, a ponto de ser eleito como o melhor jogador do país em 2014 – reflexo de suas ótimas atuações no Mundial do Brasil, enquanto defendia também o Wolfsburg.
Aos 28 anos, Rodríguez é o jogador hispano-suíço com mais partidas pela seleção. São 85 aparições com a camisa alvirrubra e nove gols. Segue como um nome importante nesta Euro 2020, ainda que as limitações físicas tenham deslocado o lateral para o lado esquerdo da zaga com três homens. Além das origens espanholas, o camisa 13 também possui raízes chilenas. Sua mãe nasceu no Chile, com ascendência basca, enquanto seu pai é espanhol da Galícia, de uma cidade na fronteira com Portugal.
Já Loris Benito chegou depois na seleção da Suíça, ainda que seja um ano mais velho que Ricardo Rodríguez. O lateral também defendeu as seleções de base, mas não viu sua carreira progredir como o esperado de início. Jogou por Aarau e Zürich, antes de uma passagem apagada pelo Benfica. O defensor estourou mesmo no Young Boys, ganhando a primeira convocação em 2018. Transferiu-se depois para o Bordeaux e a Euro 2020 é sua primeira competição internacional pelos helvéticos.
As raízes de Benito estão nas Astúrias e na Galícia, de onde seus familiares saíram. O lateral é primo de Ivan Benito, que atuou como goleiro no Campeonato Suíço. Ter parentes jogadores, aliás, parece algo comum entre os hispano-suíços do futebol. Ricardo Rodríguez também possui dois irmãos, Roberto e Francisco, que viraram jogadores profissionais. Ambos passaram pelas seleções suíças de base e atuam juntos hoje em dia no Schaffhausen, da segunda divisão local. Mais novo dos três irmãos Rodríguez, Francisco chegou a ser convocado por Jorge Sampaoli em 2014, em decorrência de sua ascendência chilena. Porém, preferiu recusar a oportunidade por imaginar que ainda teria chances de defender a Suíça, então com 18 anos.
Contra a Espanha na Euro 2020, Rodríguez e Benito terão uma motivação a mais para encarar o duelo. O zagueiro pela esquerda, em especial, é quem mais pode fazer a diferença. Num caldeirão cultural e étnico como a Suíça, é bom não perder de vista como as ligações com outras seleções são amplas. E apresentando um retrato da sociedade além daqueles normalmente relacionados com o futebol local.