Palco de La U x Botafogo, Estádio Nacional já foi local de execuções e tortura | OneFootball

Palco de La U x Botafogo, Estádio Nacional já foi local de execuções e tortura | OneFootball

In partnership with

Yahoo sports
Icon: Jogada10

Jogada10

·01 de abril de 2025

Palco de La U x Botafogo, Estádio Nacional já foi local de execuções e tortura

Imagem do artigo:Palco de La U x Botafogo, Estádio Nacional já foi local de execuções e tortura

“Um povo sem memória é um povo sem futuro.” Cravada na escotilha 8 do Estádio Nacional, único setor ao qual o público não tem acesso durante os jogos, a sentença é uma resposta a feridas expostas no palco do confronto entre Universidade de Chile e Botafogo. A bola rola nesta quarta-feira (2), às 21h30 (horário de Brasília), em Santiago, pela primeira rodada do Grupo A desta edição da Copa Libertadores. No Maracanã dos Andes, o Chile acompanha orgulhosamente sua seleção. Porém, no mesmo lugar, pessoas foram detidas, torturadas e executadas por um regime que lhes arrancou toda a dignidade. Aliás, é algo tão grave que alguns historiadores não classificam como “exagero” a comparação entre a cancha e um campo de concentração.

No Estádio Nacional, o futebol convive com as dores do passado. Em 1962, ídolos do Botafogo, como Nilton Santos, Zagallo, Garrincha e Amarildo, conduziram o Brasil a um bicampeonato mundial. Passaram-se 11 anos, e o Chile trocou a democracia por uma ditadura sanguinária quando as Forças Armadas, lideradas pelo general Augusto Pinochet, derrubaram o governo eleito nas urnas de Salvador Allende. Curiosamente, o ex-presidente socialista era um hincha da La U. A ascensão do militar ao poder, em 11 de setembro de 1973, significou temos de repressão, censura, perseguição, desaparecimento e exílio. Assim, muitos homens e mulheres que não tinham qualquer envolvimento político também sofreram nas mãos do Estado até 1990. Bastava que algum vizinho os denunciasse ou que os carabineros (polícia local) julgassem a vítima como suspeita.


Vídeos OneFootball


Portas abertas aos sábados no Estádio Nacional

Nas manhãs de sábado, o Nacional abre, então, as suas portas para recontar o horror daquela época às novas gerações. A visita é organizada por um grupo ligado aos Direitos Humanos cuja principal função é preservar a memória e não deixar a história cair no esquecimento dos mais jovens. Durante um pouco mais de duas horas, três ex-presos políticos do estádio se alternam para explicar, com detalhes, como funcionava cada divisão da antiga prisão e como a barbárie impactou em suas vidas naqueles dois meses. A equipe de reportagem do Jogada10 acompanhou um destes percursos in loco.

Imagem do artigo:Palco de La U x Botafogo, Estádio Nacional já foi local de execuções e tortura

Não é só futebol. Estádio Nacional é também espaço de memória e reflexão – Foto: Leonardo Pereira/Jogada10

“Não queremos que os mais novos passem perto daquilo que vivemos. Os jovens têm a missão de defender o legado daqueles que ficaram vivos para contar o que aconteceu. Não empunhávamos armas. Éramos pacíficos e simpatizantes de um governo que lutava por uma sociedade mais justa. Por isso, paramos aqui. Passamos por diversas humilhações e nos afastaram de nossas famílias. Até hoje há quem sustente que não houve desaparecidos e torturados no Chile. Não podemos deixar que a história morra quando partimos”, alertou o ex-prisioneiro Alejandro Pereda.

Brasil é o primeiro do ranking depois do Chile

De setembro a novembro de 1973, estima-se que entre 20 e 30 mil pessoas, de diversas nacionalidades, incluindo mulheres grávidas, passaram pelo Estádio Nacional, sob a vigilância de guardas armados até os dentes. O Brasil, depois do Chile, é o país com o maior número de presos políticos. Além dos países sul-americanos, havia também cidadãos dos Estados Unidos, México, Cuba, Porto Rico, Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Nova Zelândia, Iugoslávia, Dinamarca, Suécia, Espanha, Suíça, Polônia, Romênia, Itália, Holanda, Luxemburgo, Japão, Kuwait e Paquistão. Cerca de 400 desses detidos foram assassinados pelas mãos do governo Pinochet.

“O estádio era uma prisão improvisada, pois as cadeias já estavam lotadas. Os corredores eram usados para interrogatórios. No velódromo, torturavam. Os 28 vestiários, que ficavam abaixo das tribunas, viraram celas. Havia cerca de 100 prisioneiros em cada uma. Às vezes, um oficial entrava encapuzado e atirava para o alto. Tortura psicológica. Nas escotilhas, entretanto, a situação era pior. Cerca de 300 pessoas por dependência. Entre elas, um brasileiro chamado Renato, de quem me tornei muito amigo, e um companheiro que, com sua conversa, amenizava o medo, o frio, a incerteza e as necessidades que passávamos. Um dia, o levaram. Nunca mais o vi. Penso nele quase todos os dias”, relatou, ao J10, o engenheiro mecânico Patricio Sandoval Droguett, o Pato, um dos sobreviventes do cárcere.

Imagem do artigo:Palco de La U x Botafogo, Estádio Nacional já foi local de execuções e tortura

Pato posa ao lado de sua imagem nas escotilhas do Estádio Nacional. Ele conversou com o J10 após a visita – Foto: Leonardo Pereira/Jogada10

Chile x U.R.S.S. no Estádio Nacional

No período, o futebol voltou à cena, mas de uma forma que até hoje envergonha os ex-prisioneiros. Chile e União Soviética, com governos ideologicamente antagônicos, disputavam a repescagem das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1974. Na partida de ida, em Moscou, o placar terminou zerado. A Fifa marcou a volta para o Estádio Nacional. No entanto, era necessário remover os prisioneiros ou, pelo menos, escondê-los – ou seja, maquiar o local. Os europeus, por sua vez, se recusaram a disputar a partida e nem sequer viajaram. Alegavam que não pisariam em um gramado manchado de sangue. Os sul-americanos, então, conquistaram a classificação, entrando em campo para enfrentar um adversário fantasma. Os anfitriões marcaram um gol em uma das cenas mais patéticas de todos os tempos no futebol.

Imagem do artigo:Palco de La U x Botafogo, Estádio Nacional já foi local de execuções e tortura

Um raio de sol na escuridão. A escada, todavia, levava ao velódromo, local de tortura dos presos – Foto: Leonardo Pereira/Jogada10

Sobrou até para o Santos

Para amenizar o impacto do circo, a ditadura chilena, em parceria com a brasileira, convidou, enfim, o Santos para um amistoso comemorativo pela classificação dos chilenos. Resultado: diante de apenas 20 mil espectadores no Estádio Nacional, o Peixe aplicou um categórico 5 a 0 e esfriou a comemoração dos donos da casa.

“Vocês conhecem a história e sabem que vivíamos no mundo polarizado da Guerra Fria. A própria sociedade chilena tinha essa marca. Na minha própria família, havia parentes que enxergaram o golpe de 1973 como algo positivo. O futebol é uma expressão popular e cultural que não está alheia ao poder. Não creio que os jogadores do Chile tenham culpa. Afinal, havia censura, e a maioria não sabia sobre os prisioneiros políticos no local onde jogariam. Foi a Fifa que os ordenou a vestir o uniforme e entrar em campo. Mas não podemos chamá-los de alienados. Carlos Caszely, por exemplo, nos redimiu”, acrescentou Patrício.

O ex-atacante do Chile, a quem Patrício se refere, é um símbolo na luta contra a ditadura civil-militar. O ex-jogador, cuja mãe foi torturada, se recusou a apertar a mão de Pinochet antes do Mundial da Alemanha. Ele, portanto, fez sua parte ao não permitir que o tirano usasse o futebol como propaganda política.

Siga nosso conteúdo nas redes sociais: Bluesky, ThreadsTwitter, Instagram e Facebook.

Saiba mais sobre o veículo