Zerozero
·29 de outubro de 2024
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Angola. Antigamente, era um país com muito pouca expressão no que ao desporto-rei diz respeito. Agora, tem estado nas bocas do continente africano, fruto de um modelo progressista. Depois de uma prestação histórica no CAN, com a chegada aos quartos-de-final da competição, os Palancas Negras encontram-se numa fase de notório desenvolvimento que parece não ter fim à vista. A verdade é que, em 2024, ninguém venceu mais jogos internacionais oficiais do que a turma angolana. O grande responsável pela euforia do povo é lusitano: Pedro Soares Gonçalves. O selecionador de 48 anos conta já com um profundo conhecimento sobre este paradigma, através dos múltiplos anos ligado ao país. Apesar das múltiplas (e notórias) dificuldades orçamentais dos Palancas Negras, os resultados têm sido bastante abonatórios. Se o passado foi adverso e o presente é favorável, o futuro parece bastante promissor. O próprio comandante que o diga. Nesta primeira parte da entrevista, o técnico português aborda a surpreendente incursão de David Carmo no seu projeto, a estratégia de incorporação de jogadores que atuam na Diáspora, bem como a possibilidade de Florentino Luís ser o próximo elemento a entrar neste empolgante barco.
zz: A seleção angolana tem apostado de forma recorrente nos atletas que atuam no futebol lusitano. A que é que se deve este encanto pelo panorama português e pelo talento que daí advém?
Pedro Gonçalves: Muitos dos jogadores que passaram pelo futebol português têm sido uma referência para nós, pela qualidade que o campeonato evidencia a nível de jogadores e de estruturas, bem como pelo profissionalismo e pela competência dos seus treinadores. Eu sinto que é um arco muito interessante na carreira de qualquer profissional. Muitos craques que estão a jogar nas principais ligas do mundo, angolanos ou não, passaram por este contexto. É algo que a nós, treinadores portugueses, nos enche de orgulho. Atuar no contexto luso não é um fator de convocatória, mas é um fator a levar em consideração. zz: Existem cada vez mais atletas do paradigma português a serem observados, com vista a ingressarem nesta gama de opções para os Palancas Negras? PG: Sim, nós temos vários jogadores na mira. Alguns são mais regulares, outros menos. Por exemplo, neste ano civil, nós tivemos a Taça COSAFA, que voltámos a vencer 20 anos depois. Nesta prova, o meu pensamento passou sempre por uma perspetiva a médio/longo prazo. Apostei em jogadores do ciclo de seleção principal, com internacionais à mistura, e outros que não eram, mas que nós andávamos a seguir. Encontrámos, assim, o espaço para alguns futebolistas somarem as suas primeiras internacionalizações e para ganharem mais consistência. Nós temos aqui alguns exemplos de profissionais que militam na I Liga, II Liga ou Liga 3.
zz: Tem sido fácil convencer estes profissionais a integrarem o seu projeto? Quais são os valores essenciais que o mister tem em consideração nas suas decisões?
PG: A nossa estratégia passa por uma perspetiva de desenvolvimento de jovens jogadores, bem como da agregação de mais-valias. É público que nós gostaríamos de vir a contar com alguns futebolistas, mas também tem que existir um compromisso comum. Quem representa a Angola tem que estar comprometido com a representação do país e com o inequívoco espírito de missão. Quero acreditar que muitos jogadores que antigamente estavam com dúvidas agora já não as têm, até porque o paradigma mudou. Enquanto antes era eu a fazer muitos contactos e observações, hoje em dia é muito mais o contrário.
zz: Angola tem apostado, notoriamente, numa abordagem distinta, incorporando nas suas fileiras futebolistas com raízes associadas ao respetivo país. Como é que tem decorrido a implementação desta nova filosofia?
PG: Quando, em agosto de 2019, sou convidado para a seleção principal- e estava ainda a portas de ir fazer o Campeonato do Mundo com os sub- 17- comecei logo a desenhar o plano de intervenção para o futuro. Defini claramente duas opções estratégicas de evolução, partindo do pressuposto que daí a seis a oito anos iríamos estar no top-10 das seleções africanas. As duas vertentes que nós desenhámos passavam por agregarmos as mais-valias da Diáspora, uma vez que tínhamos muito poucos atletas comprometidos em representar Angola, e maximizar os valores emergentes do futebol angolano, que eu até conhecia bem das seleções jovens. Queria que utilizassem também a seleção para dar visibilidade ao seu talento e poderem partir para carreiras internacionais. Então, surgiu a questão: 'Que jogadores têm efetivamente ligações com Angola?'. Os jogadores da Diáspora têm que ter capacidade de suportar situações que não passaram nos países onde nasceram ou cresceram. Nesse perfil, procurámos também atletas que tenham feito o seu percurso de formação em academias de referência do futebol mundial ou que tenham passado pelas seleções jovens de países conceituados, onde incluo Portugal, França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Suíça, Itália e Espanha.
zz: A aposta é então em jovens talentos, certo? Sempre com os olhos abertos no futuro...
PG: Exatamente. Comigo nunca se estreou nenhum jogador com 30 anos ou mais. É uma abordagem a pensar no futuro, em fazer ciclos. Nunca inseri um novo elemento só para desenrascar.
zz: Posto isto, queria também questioná-lo acerca do 'caso David Carmo', que fez muito furor aqui em Portugal. O central acabou, então, por integrar a seleção angolana, numa decisão surpreendente aos olhos de muitos. A ideia de tornar internacional por Angola um jogador desta craveira partiu de si?
PG: No caso do David Carmo, rapidamente detetámos o perfil. Preenchia múltiplos requisitos que nós entendíamos serem muito importantes. Fiz a abordagem, mas este foi um processo que também exigiu maturidade por parte do atleta. Pensar bem até se decidir. Este processo demorou praticamente dois anos. Quero destacar que a forma como o David me transmitiu que queria muito jogar por Angola foi de tal forma perentória que eu, na convocatória que se seguiu, voltei a confrontá-lo. Registei com muito agrado a honradez e a sua postura. Ele disse-me 'estou absolutamente convicto de que é Angola que eu quero representar. É um grande orgulho para mim e para a minha família.' Eu fiquei extremamente satisfeito por ouvir estas declarações, que transparecem o seu compromisso completo e total. Ele acaba por representar um bocadinho o modelo de jogador que nós queremos, desde a competência à personalidade.
zz: E o que é que um jogador como o David Carmo, com a experiência e qualidade que possui, tem vindo a acrescentar à sua equipa? PG: Há logo evidências naturais desde que entrou, malgrado na estreia. No jogo de preparação com Marrocos, com um ambiente frenético, ele, infelizmente, apontou um autogolo fruto de uma abordagem infeliz. Contudo, sem contar com este incidente, o David protagonizou uma excelente exibição e, desde então, tem sido um esteio da nossa equipa, não só na ação defensiva, mas também na construção e na nossa organização de jogo. Permite-nos também ganhar alguma robustez no que toca à flexibilidade tática, de podermos variar entre o 4-3-3 e o 3-4-3. Dá-nos uma grande segurança defensiva e coesão, porque há muitas equipas em África que jogam em transição rápida, através de jogadores dotados do ponto de vista físico. Neste momento, ele tem apenas sete internacionalizações, mas espero que ganhe cada vez mais protagonismo e que faça uma carreira especiosa connosco.
zz: Outro assunto que tem sido bastante comentado aqui em Portugal tem a ver com a possibilidade de Florentino Luís, do Benfica, vir a vestir a camisola de Angola, em detrimento da de Portugal. É verdade que o jogador já foi abordado por si? Poderá seguir os mesmos passos que o David Carmo? PG: Bem, o Florentino, curiosamente, até é um jogador da geração do David Carmo. Defrontei-o várias vezes quando eu estava na Academia do Sporting.
zz: A sério?
PG: Sim. Conheço o Florentino desde tenra idade. Sei de toda a qualidade que ele tem. É público que, em 2019, quando eu era selecionador das camadas jovens, tive um encontro pessoal com o Florentino, onde tive a oportunidade de lhe transmitir o interesse da nossa seleção. Desde então, têm vindo a ser feitas várias diligências, a última das quais este ano, onde uma comitiva angolana esteve presente em Portugal. Apresentámos, assim, as nossas ideias mestres sobre a sua eventual incorporação connosco.
zz: O médio mostrou-se reticente?
PG: O Florentino sempre foi muito franco, muito honesto. Nunca descartou essa possibilidade, mas sempre deixou no ar que precisava de mais tempo para decidir. Não queremos pressionar o jogador e, por isso, resta-nos esperar pela decisão. É evidente que ele também ambiciona chegar à seleção portuguesa. Não há que ter aqui medo das palavras. Nós temos os nossos meios de comunicação e somos muito transparentes na nossa abordagem. Também não fazemos qualquer tipo de promessas aos jogadores que nós não possamos cumprir. Posto isto, se algum dia o Florentino quiser jogar por Angola, e se merecer estar na convocatória, temos a certeza que será uma grande mais-valia para nós. zz: Mas este contacto tem sido permanente, certo? Para tentar apurar alguma novidade... PG: Sim, sem dúvida. Realço novamente que ele tem sido sempre muito frontal e nós gostamos disso. zz: Acreditamos também que esteja a acompanhar o paradigma do futebol português. Com a chegada de Bruno Lage, o Florentino voltou a ter uma preponderância superior no Benfica. Esta plena afirmação surpreendeu-o? PG: Não, de forma alguma. Sei bem das capacidades do Florentino, do seu conhecimento de jogo, da sua disponibilidade para o cumprimento das missões. Ele sempre foi muito eficaz nas suas ações. Acredito, inclusive, que ele não está a ter mais destaque agora com o Lage do que tinha com o anterior treinador. Eventualmente, a equipa é que está num melhor momento e ele, por consequência, também acaba por evidenciar-se ainda mais. Ao nível da seleção portuguesa, depois já serão contas que o meu homólogo [Roberto Martínez] terá que fazer, porque o panorama da equipa para essa posição é muito rico. A competitividade é elevadíssima.
zz: Sim, opções não faltam para o selecionador nacional, ainda para mais nesse setor do terreno...
PG: Eu recordo-me de um jogador que eu treinei e que é um grande talento do futebol português. Tem passado pelos pingos da chuva como eventual opção para a seleção nacional. Estou a falar do Daniel Bragança. É um jogador altamente virtuoso. Portanto, fico feliz por quem tem um leque de escolhas tão vasto. zz: A influência de Daniel Bragança tem sido cada vez maior com o decorrer do tempo. O ano passado trouxe à tona toda as suas potencialidades. Acha então que o meio-campista leonino já mostrou o suficiente para ter, pelo menos, uma oportunidade na seleção?
PG: É um assunto que diz respeito a Roberto Martínez e à sua comissão técnica. Ele tem certamente as suas ideias. Como disse, Portugal tem jogadores de elevada qualidade técnica e interpretação do jogo, que jogam e competem ao mais alto nível. Aquilo que eu posso dizer, como ex-treinador do Daniel Bragança, é que ele é um verdadeiro talento e um miúdo excecional. Portanto, fico espantado em não ouvir falar do Daniel Bragança, pelo menos, com tanta veemência como outros nomes (risos).
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