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·5. Dezember 2025
“Somos parte de algo maior”: Camila narra sua história e exalta uma geração que constrói o futsal feminino

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Camila nasceu e cresceu numa fazenda onde o sonho era cuidar de animais. Apaixonada por cavalos, jamais poderia imaginar que estaria em ginásios pelo mundo vestindo a camisa da Seleção Brasileira. Camila tem na fala o orgulho de ter deixado a fazenda, onde os pais trabalham até hoje, para realizar o sonho da formação acadêmica ao mesmo tempo que se realizava no futsal. A trajetória que transformou uma menina de Ubiratã em referência do futsal é feita de renúncias, de professores que apareceram no momento certo, de treinadores que mudaram rumos e de projetos que se tornaram grandes realizações. É a história de quem escolheu terminar a faculdade em vez de aceitar propostas fáceis, e de quem hoje sente o peso e a honra de representar o Brasil na primeira Copa do Mundo da modalidade. A seguir, nessa entrevista a CBF Tv, Camila fala sobre origem, luta, escolhas e o legado que quer deixar.
Queria começar revisitando o início da sua história. Em que momento o futsal começou a fazer parte da sua vida para nunca mais sair? De onde nasce a Camila que o futsal conhece hoje?
Eu sou de Ubiratã, no interior do Paraná, perto de Cascavel. Fui criada na fazenda, menina da roça mesmo. Vivi ali a vida inteira na fazenda até sair para jogar futsal. Meu pai é pecuarista, minha mãe é "do lar", e somos três irmãos. Eu sou a caçula. A família inteira sempre foi apaixonada por futebol: tios, tias, e até minha mãe, que jogava também. Mas, por ser muito ligada à fazenda, meu grande amor de infância eram os animais, principalmente os cavalos, paixão que herdei do meu avô. Eu até jogava bola, mas vivia mais em cima de um cavalo. A minha alegria de infância era montar na garupa do meu avô do cavalo dele para o pasto, atrás de vaca. Meu sonho de criança era ser veterinária, nunca jogadora de futsal. O futsal apareceu por acaso. No fundo da casa havia um campinho, onde minhas tias e o pessoal da fazenda tinham um time chamado Bom Jesus, nome da fazenda que a gente morava. Eu era pequena, não jogava, mas estava sempre no meio da bagunça. Meu primeiro contato com a bola foi ali, no campo. Já o futsal veio na escola, nas aulas de educação física, jogando entre meninas. Nunca tive escolinha, até porque na fazenda não tinha acesso. Minhas primeiras competições foram os jogos escolares..eu jogava futsal e handebol.
Como a menina da fazenda, criada entre animais e na roça, se transforma em atleta.Como foi perceber tão nova que seu lugar era no futsal mesmo sem ter tido acesso a escolinhas ou estrutura?
Meus pais sempre me apoiaram muito. Em 2004, nos mudamos para Carapó, no Mato Grosso do Sul, e ali existia o futsal feminino, com torneios e competições, principalmente em Laguna. Eu, minha irmã e meu irmão começamos a jogar, e mesmo pequena, com 12, 13, 14 anos, eu já jogava no adulto. Em 2009, pelo Orkut, uma pessoa de Pindamonhangaba chamou para um teste. Fui com minha irmã. Em casa nunca passamos necessidade, mas vivíamos com o básico. A única coisa que eu podia escolher era o tênis de futsal. Meus pais nos deram o cartão do banco e disseram para irmos, que se não fosse o que imaginávamos, poderíamos voltar. Eles sempre confiaram muito em nós. Minha irmã não ficou nem uma semana, a realidade era bem difícil: a casa, a alimentação… Ela pediu para ir embora. Eu fiquei três, quatro meses e também voltei. Minha primeira saída de casa tinha sido muito difícil. Eu jogava por gostar, sem compromisso coletivo, e tudo era novidade: treino físico, bola parada, marcar… Fiquei frustrada e não soube lidar, então voltei. No mesmo ano fui para Araçatuba. Mas em 2010, já com alguma vivência, tive a Silvana Kuka como treinadora em Araçatuba, e aquilo foi uma virada de chave. Fiquei 2010 e 2011 lá. Em 2012 voltei para Pindamonhangaba, meu último ano de sub-20. Aquele ano marcou outra virada: com um salário melhor, decidi que não pediria mais dinheiro aos meus pais. Queria me virar, viver minha vida.

Camila com os irmãos, pai e mãe Créditos: Arquivo pessoal
Como foram as temporadas seguintes?
Em 2013 no ano seguinte, eu fui para Bebedouro também, interior de São Paulo. E ali eu fiz um ano bom também. Joguei bem, fui bem. Ganhei títulos com eles. E aí em 2014 eu fui para o Paraná. E aí eu fui para Prudentópolis, Paraná. E esse ano foi bem difícil também, porque o lugar não montou o time. Eu e a Júlia (esposa e goleira da Seleção) fomos antes, porque nós íamos estudar. E a gente se matriculou e nada das meninas. Nada. Por fim ali em abril já, ele falou, não, não vai ter time. A nossa sorte foi o Ratinho, que tem um time em Guarapuava. E ele tem uma parceria com a faculdade, com a Uni Guaracá. Ele nos acolheu, me deu a bolsa. A gente morava em Prudentópolis e jogava pelo Guarapuava. No ano seguinte, 2015, fui pra Guarapuava mesmo, morei e joguei pelo Guarapuava. Em 2016, eu fui pro Cianorte. Cianorte era o melhor time do Paraná, na época. E ali foi onde eu conquistei praticamente todos os títulos que tinham no cenário nacional. Fui campeã quatro anos campeã paranaense, em 2016, 2017, 2019, 2020. Fomos campeãs da Copa do Brasil, da Libertadores, da Supercopa. O único título que eu não ganhei com o Cianorte foi a Taça Brasil. O resto, todos nós ganhamos. E 2021, eu fui pro Stein.
O que representou sua passagem pelo Stein e o ano de 2023 para você?
Foi uma virada de chave ainda maior. Foi aí que eu comecei a trabalhar com o Coelho (auxiliar técnico da Seleção), que me deu um estilo de jogo diferente do que eu tinha, me fez crescer muito como profissional, como pessoa também. E o Stein como um todo, começou um projeto novo que se expandiu, que cresceu muito rápido e acho que todos que estavam que faziam parte desse projeto, cresceu junto. Então foi uma história bem bonita que eu vivi no Stein. E em 2023, foi o ano mais especial, que tanto eu como o Stein, nós fomos os melhores do mundo. Foi algo bem marcante.
Quando foi sua primeira convocação? Qual é sua melhor memória com a seleção brasileira? E como foi saber que estava convocada para esta Copa do Mundo?
A minha primeira convocação foi em 2021, que foi a primeira convocação CBF. Foi muito especial, porque era uma coisa que a gente queria muito, que o futsal fosse abraçado pela CBF, então já foi ali. Foi um período de treinamento em Sorocaba, a gente ficou ali reunido só para treinar. Além de ser a minha primeira convocação, foi um momento muito especial para o futsal brasileiro, tanto é que foi uma convocação das meninas e dos meninos para treinamento. E a conquista da Copa América Copa América me marcou porque que foi onde nós conquistamos a vaga aqui para a Copa do Mundo, que era algo que a gente queria, que a gente sonhava muito, e conquistar isso na nossa casa, foi ainda mais especial.

Camila durante jogo contra o Japão válido pelas quartas de final da Copa do Mundo nas FilipinasCréditos: Fabio Souza/CBF
Você lembra do seu primeiro jogo pela Seleção? A cada convocação você revive o que você sentiu na primeira vez ?
O meu primeiro jogo foi contra a Espanha, em 2023, nos Amistosos. Foi muito especial, porque em 2021 eu tinha sido convocada pela primeira vez pela CBF, mas só com atletas que estavam no Brasil. Em 2023 foi diferente: os jogos foram na Espanha, com todas as atletas, inclusive muitas que eu admirava demais. Estar ali com elas me deixou muito emocionada, muito feliz e realizada. Já a convocação para a Copa, a expectativa era enorme. A CBF anunciou com bastante antecedência, e a gente fica naquela: ‘será que meu nome vai estar lá?’. O diretor do Nun’alvres acabou contando antes, oficialmente, mas eu precisava ouvir o Sabóia dizendo ‘Camila, fixa do Nun’alvres’. Eu já sabia, mas até ele falar, eu ainda pensava: ‘será que é isso mesmo?’. Quando ouvi meu nome, a alegria tomou conta. E eu não contei para a família...deixei eles descobrirem pela transmissão. Sofri esperando junto com eles.
Estar longe da família, viver em outras cidades, amadurecer...As dificuldades fizeram você repensar sua escolha pelo futsal?
Uma coisa que me manteve firme foram os estudos. Meus pais não tinham condições de pagar uma faculdade e sempre me pediram para estudar. O futsal, mesmo ainda em evolução, me ofereceu essa oportunidade, e a faculdade virou meu objetivo: eu precisava me formar. Mesmo quando fiquei sem receber, meu pai ajudava com o que podia...levava sabonete, material de higiene e isso me dava força para continuar. Minha motivação era essa: estudar e retribuir aos meus pais, que abriram mão dos sonhos deles para que eu pudesse viver os meus. Em 2018, meu último ano de faculdade, recebi propostas para jogar campo, com salário melhor, e até para ir à Europa. Mas abri mão de tudo para terminar o curso. Sempre digo que, depois da faculdade, tudo que veio foi bônus. Hoje sou formada em Educação Física; veterinária ficou lá para a Camilinha, pequenininha.
Você foi para a Europa. Primeiro o FSF O Castro e depois o Nun´Álvares. Como foi essa decisão e adaptação?
Fiquei no Stein por quatro temporadas, quatro temporadas maravilhosas e decidi ir para a Europa. Foi muito difícil. E foi bem difícil tomar essa decisão, até pela questão também da família, porque uma coisa é você estar longe, mas eu morava em Cascavel cinco horas da minha casa. E ir para a Europa aí sim, está longe de verdade. Então foi uma decisão bem difícil, bem difícil mesmo. Só que sair do Stein para outro clube no Brasil para mim não fazia sentido. Então tive que ir para a Europa mesmo.

Camila durante jogo contra o Panamá na terceira rodada da fase de grupos da Copa do Mundo nas FilipinasCréditos: Fabio Souza/CBF
Mas hoje você tem certeza que fez a escolha certa?
Ah, sim, sim. Foi uma decisão muito difícil, de verdade. E os primeiros meses na Europa também foram complicados, principalmente o primeiro mês que eu queria voltar para o Brasil todos os dias. Depois tudo foi ficando mais tranquilo e a adaptação começou a acontecer. Fiquei pouco tempo: cheguei na Espanha em janeiro de 2025 e, em agosto, fui para Portugal. Tudo ainda muito recente. Em Portugal foi mais fácil, pela língua e porque o choque inicial da Europa já tinha passado. Uma das maiores dificuldades foi a rotina de treino. Eu vinha de um time que treinava de segunda a sábado, com dois períodos. Na Europa eram só quatro treinos por semana, e o último era na quinta para jogar no sábado. Isso foi muito difícil para mim...treinar menos. A língua também pesou no começo, embora tivéssemos bastante brasileiras no clube. A alimentação a gente ajustou cozinhando em casa. Mas a parte do treino, de treinar menos, foi realmente o mais complicado.
Com toda a sua experiência no futsal, inclusive ter sido eleita melhor do mundo na modalidade, qual sua visão do futsal feminino mundial hoje?
Eu vejo o futsal muito forte. A evolução do futsal, eu falo também pelas equipes sul-americanas, os jogos que a gente via antes e o que tem hoje, pelas competições, a evolução do futsal sul-americano. Eu acredito que foi um crescimento geral. Mas a liga espanhola para mim, eu tinha essa visão antes de jogar, eu, Camila, jogando a liga espanhola para mim foi a liga mais forte. Talvez pela quantidade de brasileiras que tem ali, que na Itália tem limite, em Portugal tem limite, no Brasil, muitas brasileiras de qualidade jogam na Europa, então isso acaba enfraquecendo a nossa liga, uma liga que é recente também, que é uma liga nova, que está em crescimento.
E a Copa do Mundo? Jogos com goleadas expressivas...está dentro do que esperava? Placares, performances das seleções?
Eu acredito que está dentro do que era esperado até propriamente pelos confrontos. Porque eu acho que diferente disso seria talvez zebra, vamos dizer assim. Eu acredito que o desenrolar da competição está dentro do que todo mundo imaginava. Acho que alguns times sofrendo um pouco mais do que talvez fosse esperado. O que eu vejo como uma coisa muito boa. Se teve dificuldade é porque aquele adversário evoluiu, está melhor do que a gente acreditava. E isso para a modalidade é ótimo.

Seleção Brasileira (esq. para dir.) em pé: Júlia, Débora Vanin, Simone, Camila, Emilly, Luana, Bianca; Agachadas: Ana Luiza, Natalinha, Luciléia, Taty, Amandinha, Diana e TampaCréditos: Fabio Souza/CBF
Vocês representam uma geração de mulheres que lutaram e lutam pelo futsal. O que isso significa para você? A responsabilidade de representar o Brasil na primeira Copa do Mundo?
Eu confesso que é um peso. Porque assim, quando a gente olha lá para trás, a gente vê que muitas meninas, muitas mulheres brigaram por isso. O Brasil sempre ganhou tudo. Não era oficial, mas o Brasil sempre ganhou. Era o que nós tínhamos e o Brasil ganhou. Então eu penso que o que elas fizeram não vale nada se a gente que está aqui hoje não continuar fazendo. Se a gente não ganhar essa Copa do Mundo, isso para mim é um peso. É uma coisa boa, responsabilidade. Eu gosto disso, mas é uma responsabilidade que eu carrego. A gente precisa continuar escrevendo a história do Brasil linda como ela veio até aqui. Tanto para honrar com aquelas que trabalharam tanto e não estão podendo viver esse momento, como para aquelas que vão vir. De que, nossa, elas conseguiram, a gente também pode.
Qual o legado que vocês querem deixar para as próximas gerações pós-Copa do mundo?
Eu acho que isso independe do resultado. É, eu acho que a alegria, sabe, a alegria do Brasil, a alegria do brasileiro, todo mundo admira o futsal brasileiro. Inclusive tem gente que acha que a gente não precisa treinar. Tem gente que acha que o brasileiro tem o dom do futebol, do futsal. É uma admiração mundial. Tanto é que todos querem ganhar do Brasil. Porque o Brasil é especial, não tem como falar aqui, não. O legado é esse, sabe, de transferir esse recado, de seguir com essa alegria, com esse encanto que as pessoas têm. A Taty (capitã da Seleção), fala: ‘temos que ser Brasil’. Essa frase me marcou bastante. E acho que o legado é esse. Ser Brasil.









































