"Futsal vai além do esporte. É identidade": goleira Júlia conta como o futsal transformou sua vida | OneFootball

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·3 December 2025

"Futsal vai além do esporte. É identidade": goleira Júlia conta como o futsal transformou sua vida

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Em Iporã do Oeste, uma pequena cidade do interior de Santa Catarina, já existiam mulheres disputando torneios nos finais de semana. Foi nesse ambiente que Júlia encontrou seu espaço. Aos 12 anos, o destino decidiu por ela ao assumir a posição de goleira em um campeonato municipal. Assim ela descobriu sua paixão e talento, e o gol se tornou seu lugar seguro. Entre treinos improvisados, viagens sem salários, condições precárias e desafios familiares, Júlia aprendeu a equilibrar estudo, trabalho e esporte, mantendo sempre o vínculo e a responsabilidade com a família, que norteou suas decisões mais importantes. Julia construiu uma carreira com perseverança e amor até chegar Seleção Brasileira e, finalmente, à primeira Copa do Mundo de futsal feminino da história, mostrando que o futsal pode transformar vidas.

Julia, antes de falarmos sobre Seleção e carreira, quero voltar ao início de tudo. Como o futsal entrou na sua vida?


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Eu sou uma menina do interior de Santa Catarina, Iporã do Oeste. Sou apaixonada pela bola desde muito pequena. Todas as minhas lembranças de infância envolvem futebol com a família, na escola, com amigos. Era o que eu mais amava fazer. Na minha cidade não havia escolinha de futsal ou futebol de campo. Mas já existiam equipes femininas que disputavam torneios de society e campo nos finais de semana. Desde os nove, dez anos, eu já estava no meio daquelas mulheres, acompanhando os jogos e vivendo aquele ambiente de competição. Eu era muito pequena para jogar, mas estava sempre ali, feliz de fazer parte daquilo. O futsal entrou na minha vida de forma até engraçada. Havia um campeonato municipal e eu e minhas amigas resolvemos participar. Na época, eu jogava na linha. Eu tinha uns 12, 13 anos. Como ninguém queria ir no gol, eu disse: “Eu vou”. A gente jogou o campeonato e eu fui destaque como goleira. O time campeão me convidou para treinar com elas, e ali nasceu minha paixão pela posição. Depois disso, só joguei no gol.

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Entrada de Júlia em quadra na estreia da Seleção Brasileira na Copa do Mundo FIFACréditos: Fabio Souza/CBF

Então você cresceu numa cidade que havia espaço para o futebol de mulheres. Como foi construir essa trajetória?

A gente treinava nessa equipe nos horários possíveis: ou às 11 da noite até meia-noite, ou às 6, 7 da manhã, porque as meninas trabalhavam de dia e eu estudava à noite. E competíamos aos finais de semana. Fiquei dos 12 aos 16 ali. Aos 17, no fim do ensino médio, meu tio, que mora no Rio Grande do Sul, me ligou dizendo que haveria um teste no Chimarrão, um time de futsal profissional muito forte na época. Eu quis na hora. Meus pais ficaram receosos, mas meu tio convenceu e me levou. Fiz uma semana de testes, passei e liguei para minha mãe dizendo: “Mãe, passei”. E ela respondeu: “E agora?”. Eu disse que queria ficar. A forma de apoio deles era "Vá fazer o que ama, mas estude". Voltei para casa, peguei minhas roupas e fui. As condições eram bem limitadas. Não havia remuneração. Morávamos nos fundos do ginásio que transformamos um espaço em quarto e cozinha, e o banheiro era o vestiário. Eu e mais cinco meninas. Fiquei lá quatro anos. Sem salário, mas joguei Liga Nacional já no primeiro ano, com atletas de Seleção Brasileira. Foi um salto enorme no nível. Não havia ajuda de custo. Apenas alimentação, moradia e uma bolsa parcial na faculdade.

Qual era o seu objetivo quando decidiu pelo futsal? Você sonhava com Seleção Brasileira?

Meu objetivo sempre foi viver do futsal. Eu até joguei futebol de campo no Internacional, mas a estrutura do futsal era melhor. No campo, eu teria que pagar minhas passagens, meus custos e não teria alojamento. E eu gostava mais do futsal. Então fiquei quatro anos no Chimarrão. Depois veio uma proposta do Kindermann, em Caçador, com salário, bolsa integral e melhor estrutura e mais perto da minha família. Fiquei dois anos lá. Depois fui para Fortaleza, na Unifor, onde conheci o professor Sabóia (atual treinador da Seleção). A adaptação foi muito difícil por ser cidade grande, cultura diferente. Fiquei um ano e depois decidi que iria parar de jogar porque não tinha propostas. Voltei para Caçador para continuar estudando e tinha uma rede de apoio lá.

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Júlia durante partida contra Irã na primeira rodada da Copa do Mundo nas FilipinasCréditos: Fabio Souza/CBF

O que te fez voltar às quadras?

Surgiu uma proposta de Bebedouro, no interior de São Paulo. Aceitei com a condição de ir para casa a cada dois meses, porque no período em Fortaleza meu irmão passou muito mal e isso pesou muito. Eles aceitaram, e fui. Em Bebedouro conheci a Camila (esposa). Depois fomos para o Paraná, para Prudentópolis, onde iríamos jogar pelo município. Chegamos em fevereiro, mas o time nunca foi montado. Ofereceram para jogarmos por Guarapuava ou Telêmaco Borba. Como a faculdade era prioridade, continuamos em Guarapuava. O treinador Ratinho nos acolheu, deu bolsa e estágio. Ali me formei em Educação Física. Depois disso, decidi que não queria mais viver na incerteza. Estudei para concursos, passei em vários, incluindo um em Cianorte. Em 2016, a Camila foi jogar em Cianorte e eu fui chamada no concurso para ser professora de Educação Física na prefeitura. Fui. A goleira Bianca jogava lá, e as outras duas estavam machucadas. Me chamaram para treinar, e continuei jogando por cinco anos, conciliando trabalho na escola, academia e futsal. Em 2022, recebi proposta do Stein. Pedi licença não remunerada e fui. Ali, pela primeira vez, vivi do futsal com salário, décimo terceiro, staff, estrutura profissional. Mas no fim de 2022 fui chamada em outro concurso que eu havia passado. Decidi abrir mão de tudo e seguir apenas como atleta. Fique no Stein três anos.

Depois do Stein, você foi para a Espanha. Como foi?

Foi minha primeira experiência fora. Muito desafiadora. As pessoas acham que jogar fora é glamour, mas é coragem: outra cultura, outro olhar sobre você. Fui para um clube com brasileiras e idioma parecido, mas ainda assim é difícil. A liga é muito forte, a melhor do mundo. Foi incrível viver isso.

Agora você atua no Nun'Álvares, em Portugal. Como foi a adaptação?

O clube tem brasileiras e o idioma se aproxima com o português do Brasil. Mesmo assim a adaptação é difícil. É uma experiência muito bacana. Uma liga muito forte, muito competitiva. Sem dúvida é a melhor liga do mundo.

E como foi ressignificar a distância da família e do seu irmão? Como sua família foi importante para sua trajetória?

Difícil. Mas entendi que era o momento de priorizar a carreira, tentar construir alguma reserva para o futuro. Eu fui consciente, mas sei que não abro mão de voltar ao Brasil a cada seis meses. No Natal, por exemplo, estarei com eles. É importante para mim e para eles, principalmente para o meu irmão. Os valores que recebi em casa foram meu alicerce. Quando fui para o Chimarrão não existia celular. Eu ligava a cobrar aos domingos. Foram três anos assim. Era difícil, mas muito mais difícil para eles. A saudade deles era maior. Mas a educação que recebi me deu estrutura para viver tudo aquilo.

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Júlia com a família e a esposa Camila em sua casa em Iporã do OesteCréditos: Arquivo pessoal

A escolha de permanecer na modalidade é diária...exige também coragem pelo cenário de algumas incertezas?

Sim. Mas eu sempre senti que não fui eu que escolhi o futsal. O futsal me escolheu. Ser goleira me escolheu. A quadra é meu lugar seguro, onde tudo faz sentido. Eu sei o que preciso fazer. Então, por mais percalços que existam, sempre escolhi estar ali. Estabilidade não me daria aquele momento indescritível que só quem está dentro vive.

Quando veio sua primeira convocação para a Seleção Brasileira?

Em 2011, duas vezes. Joguei um torneio em Fortaleza. Depois, só em 2023. Na primeira convocação, em 2011, foi gratidão e realização. Meu foco sempre foi o clube, a Seleção é consequência. Mas vestir essa camisa é indescritível. Treinar com atletas de alto nível é desafiador. A gente toma muito gol, porque elas são incríveis. Mas isso eleva nosso nível.

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Júlia ao lado da goleira Bianca e o treinador de goleiras Alexandre PulitzerCréditos: Fabio Souza/CBF

E agora, vivendo a primeira Copa do Mundo da história da modalidade?

Está sendo melhor do que eu esperava. Convivência longa nem sempre é fácil, mas aqui existe muita maturidade. A preparação foi intensa, todos se dedicaram. O clima está leve e muito bom. É a primeira Copa, e todas as seleções querem mostrar seu valor. O nível está ótimo. O futsal feminino vive um momento muito forte.

E o legado dessa primeira Copa?

Acho que ainda não temos dimensão. Lutamos muitos anos para a modalidade não morrer, e hoje temos uma Copa do Mundo. Isso é histórico. Eu acredito que melhorias acontecem de cima para baixo. Se a FIFA promove a Copa, transfere responsabilidade para federações e confederações estruturarem seus campeonatos, clubes e suporte às atletas. Isso vai gerar mais times fortes, seleções mais qualificadas e Copas futuras ainda melhores. E, claro, vai inspirar muitas meninas a começarem no futsal.

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