Trivela
·04 de dezembro de 2021
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Em 1999, a Cabofriense, com o apoio da prefeitura de Cabo Frio, cidade da Região dos Lagos no Rio de Janeiro, decidiu alistar nomes importantes do futebol brasileiro para tentar disputar a primeira divisão do Campeonato Carioca no ano seguinte. Com certa ironia, voluntária ou não, chamou a dupla Renato Gaúcho e Leandro, pivôs de polêmica na convocação da Copa do Mundo de 1986 – após chegarem atrasados de uma folga da Seleção, Telê Santana cortou apenas Renato, e Leandro, em solidariedade, abdicou da sua vaga.
Leandro seria o diretor, e Renato, uma espécie de olheiro e empresário. A dupla firmou um contrato especial com o clube, ganhando 50% do passe de jogadores vendidos. O treinador, porém, ganharia um salário, e a nova cúpula da Cabofriense foi atrás de outro notório boêmio para o cargo: o doutor Sócrates Brasileiro, que tentava ser treinador pela terceira vez e cuja morte completa dez anos neste sábado.
Sócrates começou sua carreira no Botafogo-SP
A primeira chance surgiu, em 1994, no mesmo Botafogo em que Sócrates começou a carreira de jogador. Inicialmente contratado para ser coordenador de esportes, assumiu o cargo de José Galli Neto, depois de um começo ruim de Série A-2 do Campeonato Paulista. Com fala mansa, poucas palavras e uma filosofia liberal e ofensiva, Magrão melhorou os resultados do time e conseguiu um empate por 2 a 2 com o Comercial, jogando muito bem.
O racha aconteceu em uma partida contra o Paraguaçuense. A estratégia de Sócrates foi pedir que os jogadores marcassem pressão e dessem todas as bolas para o ponta-esquerda Toninho “matar” o lateral direito adversário. Mas o supervisor técnico Milton Bueno, o “Tiri”, outro ídolo do Botafogo, não gostou da ideia. “E ele matou o cara. Era driblador, ciscou, gingou para todo lado. A torcida estava a nosso favor, mas não saiu o gol. Quando entrei no vestiário, no intervalo, lá estava Tiri dando uma bronca nos caras, dizendo que eles não queriam correr quando na verdade o meu time estava correndo para caramba”, disse Sócrates, segundo o livro Botafogo: uma história de amor e glórias.
Sócrates se sentiu desautorizado, mas não queria brigar com Tiri. Esperou ele sair e reforçou suas orientações. “Agora não precisa mais marcar pressão. Está 0 a 0, mas o jogo está ganho”, explicou. E o Botafogo ganhou por 3 a 1. Mas o incidente o havia incomodado. Com compromissos no Japão, ausentou-se por duas semanas. Quando voltou, dirigiu o time em mais duas partidas e pediu o boné, com três vitórias, dois empates e duas derrotas.
A próxima experiência seria dois anos depois, no exterior. A LDU queria um nome famoso para comandar o time na inauguração do seu novo estádio. Em uma visita ao Brasil para contratar jogadores do Corinthians, o presidente do time equatoriano entrou em contato com Sócrates, que embarcou na aventura. Ele gastou o portunhol para tentar explicar como funcionaria o sistema de auto-gestão para os dirigentes, que não entenderam nada, mas estavam felizes por terem conseguido contratar um ex-jogador tão importante.
A brincadeira foi ainda mais curta do que em Ribeirão Preto. Sócrates não gostava de passar muito tempo longe do Brasil. Criticou a falta de técnica de seus jogadores e, em duas semanas, já queria ir embora. Acabou ficando dois meses, com três derrotas, um empate e uma vitória em cinco partidas.
“Ele era um homem melancólico, havia uma tristeza muito profunda nele”, afirmou o então diretor de futebol da LDU, Edwin Andara, ao livro Doctor Socrates: Footballer, Philosopher, Legend. “Eu nunca o vi feliz quando vencíamos ou triste quando perdíamos, ele era sempre o mesmo, com a mesma expressão. No começo, os jogadores o admiravam. Quem não admiraria esse monstro do mundo do futebol? Mas, depois, eles simplesmente não o entendiam e, eventualmente, tentaram evitá-lo. Ele não conseguia motivar os jogadores, ele era muito triste para isso. Ele não conseguia formar um time com eles. Depois do último jogo, quando perdemos para o El Nacional, ele nos disse que estava indo embora e não houve nenhuma discussão, ele nem queria ser pago. Foi um alívio para nós porque o time não estava jogando bem”.
A Democracia Corinthiana foi um marco da carreira de Sócrates
Quem contrata Sócrates para ser treinador não pode esperar métodos convencionais. Um dos líderes da Democracia Corinthiana, Sócrates tentou replicar práticas, como as votações entre comissão técnica e elenco para tomar decisões importantes – como concentrar ou não concentrar. E foi além. Quando descobriu que a Cabofriense mudaria de nome para Cabo Frio naquele ano, sugeriu um plebiscito na cidade para escolher as novas cores do clube. “Tem gente que é contra. Vamos por quatro cores em votação. A mais votada será a nova camisa”, explicou, à revista Placar de novembro de 1999.
Sócrates exigiu a contratação de um psicólogo para palestrar sobre sexo e doenças venéreas e pediu que a comissão técnica usasse capoeira e métodos da técnica chinesa tai chi chuan na preparação física. “Foi uma temporada maravilhosa, mas também muito intensa”, afirmou Leandro, ao livro Sócrates: A história e as histórias do jogador mais original do futebol brasileiro. “Sócrates ficou hospedado na pousada dos meus pais aqui em Cabo Frio (no primeiro mês de trabalho) – ficamos grudados o tempo todo, no clube e fora dele. E não era fácil: o Magrão tinha 150 ideias por minuto. Um dia, eu o encontrei no café da manhã. E ele: ‘Leandro, precisamos comprar computadores para os jogadores. Os caras precisam se conectar ao mundo, aprender, deixar de ser provincianos’. A nossa verba era apertada, não dava para comprar nem uma impressora. Ele ficou muito impressionado com o baixo nível escolar dos jogadores”.
Ciente que muitos jogadores daquele nível não conseguem carreiras estáveis no futebol profissional, o treinador preocupou-se bastante em aprimorar também a parte mental dos seus atletas. Havia um painel no vestiário, em que, todos os dias antes dos treinamentos, os jogadores tinham que colar uma manchete de jornal escolhida por eles e discutir o assunto. “Quero criar nos jogadores uma maior participação política. Eles vão ter que entender o mundo em que vivem”, afirmou à Folha de S. Paulo de 26 de setembro de 1999. “A ideia é começar a discutir questões como doenças sexualmente transmissíveis e, se possível, falar até de filosofia. Vou querer jogadores articulados. Além de colocar minha experiência no futebol em prática, quero fazer uma revolução de costumes, cultural, nesse trabalho”.
A abordagem do Magrão era realmente diferente. Preleções curtas e pouco envolvimento durante o jogo, ao qual assistia com café e cigarro na mão e nunca usando terno: jeans, camisa para fora da calça, jaqueta e, no verão, shorts e tênis. “O trabalho tem que ser feito durante a semana”, afirmou à Placar. Nesse trabalho durante a semana, Sócrates inspirava-se em Telê Santana. “Acho a repetição importante. O Telê fazia muito assim. Ele era capaz de treinar um jogador para corrigir algum detalhe por muito tempo. Com certeza acredito que as pessoas podem aprender a jogar futebol ao longo dos anos”, disse, à Folha. Ele também deu dicas sobre cobranças de pênaltis. “Eles não podem tomar muita distância da bola e têm que chutar em um dos cantos, enquanto o goleiro estiver parado. Conseguindo isso, o gol é praticamente certo”, acrescentou.
Sócrates usava seu conhecimento médico para participar do tratamento nutritivo, fisiológico e psicológico do time. E, em um jogo contra o Itaperuna, chegou até a cuidar de um jogador adversário que havia se machucado. Ele também não era muito rígido taticamente. Acreditava em dar liberdade para os jogadores, principalmente fora de campo. “Se eles me chamarem para beber, vou junto. Agora, vão ter que correr no campo. Se não conseguirem, estão fora. Sou técnico, e não o pai de ninguém”, disse, à Folha, lembrando que a filosofia havia funcionado no Corinthians. “Com ela, fomos bicampeões paulistas (82 e 83), o que mostra que o estilo dá certo”.
Sócrates abominava o conceito de concentração como jogador e não era hipócrita para o impor como treinador. Mas o problema da democracia é que ela nem sempre produz o resultado que você espera. “Eu coloco sempre em votação se os jogadores querem ficar concentrados ou não. Por incrível que pareça, eles sempre votam pela concentração”, contou, à Folha, em março de 2000. “Esses caras são muito conservadores. Em todas as votações, eu só perco de goleada. Teve uma que eu perdi por 40 a 1. Ainda não venci uma. Também deixo para todos decidirem se devemos viajar na véspera ou no dia do jogo. Fico sempre surpreso. Eles sempre querem viajar na véspera”.
Os resultados das práticas pouco ortodoxas de Sócrates foram aceitáveis. A Cabofriense foi bem na Copa Rio de 1999, liderando o Grupo C, com três vitórias, quatro empates e uma derrota. Os três triunfos foram por 1 a 0, sempre com um gol contra. “Nossa única jogada ensaiada é o gol contra dos outros”, brincou, à Placar, antes de ligar a corneta. “Nosso time tem que jogar mais. Não é possível. Erra muito. Nossa senhora”. Na segunda fase do torneio, ficou fora das quartas de final, atrás do Mesquita e do Olaria. O grande objetivo era uma vaga no Campeonato Carioca de 2000, por meio da seletiva que seria disputada no começo daquele ano. A campanha não foi brilhante, mas cumpriu a meta. Já batizado de Cabo Frio, ficou em quarto lugar no grupo com cinco integrantes, deixando para trás o Serrano, então atual campeão da Segundona do Rio de Janeiro. Como se classificavam quatro de cada chave, foi o bastante.
Vacinados pelas experiências anteriores de Sócrates, os repórteres frequentemente perguntavam até quando ele manteria o interesse pelo ofício de técnico. Em setembro de 1999, à Folha, disse que a ideia era ficar até o fim do Estadual, “mas nada impede de continuar por mais 20 anos”. À Placar de novembro daquele ano, disse que ficaria “até quando não tiver cara de rotina. De rotina, eu não gosto e nunca gostei”. Ele não terminou aquela edição do Campeonato Carioca. Em 24 de março, depois de duas partidas na Taça Guanabara – empate por 0 a 0 com o Fluminense e derrota por 2 a 0 para o Bangu -, o jornal O Globo anunciava: “Sócrates perde o cargo de técnico do Cabo Frio”. No dia seguinte, a Folha de S. Paulo dizia que ele havia sido demitido.
As versões divergem. O livro Sócrates & Casagrande – Uma história de amor diz que ele foi demitido por “razões políticas” e traz uma declaração do ex-jogador: “Ninguém me quer porque sou um revolucionário. Na divisão de elite, com toda a mídia em cima, as minhas ideias também teriam maior repercussão”. Logo em seguida, Casagrande apresenta outra visão: o Doutor simplesmente não servia para ser técnico. “Eu não via nenhuma afinidade dele com a profissão de treinador. Acho que ele seria muito bom como diretor de futebol, em um cargo administrativo, mas o estilo de vida dele parecia incompatível com a função de comando atlético de uma equipe”, disse Casão. Sócrates: A história e as histórias do jogador mais original do futebol brasileiro afirma que Magrão pulou fora quando percebeu que lideranças locais, que apoiavam o Cabo Frio, almejavam ganhar pontos políticos com o sucesso do clube, que acabou sendo o lanterna da Taça Guanabara daquele ano, com apenas cinco pontos.
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