Zerozero
·31 de outubro de 2024
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·31 de outubro de 2024
O nosso convidado terminou a carreira com um jogo internacional. Com mais de 20 anos sobre o relvado, chegou a estar em mais de cinco competições numa só época. Foi internacional mais de dez anos e esteve presente em várias finais europeias. Começou a carreira no século passado, com 16 anos, mas a formação tem mais tempo. Artur Soares Dias.
zerozero: Artur Soares Dias, com estas dicas conseguia chegar ao seu nome?
Artur Soares Dias: Obrigado, antes de mais pelo convite. É sempre um prazer partilhar alegrias, tristezas e algumas histórias. São essas histórias de que nos vamos lembrar daqui para a frente, com alguma saudade, seguramente, mas também com muita alegria, pelo percurso realizado. Confesso que não iria ser fácil responder a esse enigma. Acredito que há uma boa quantidade de pessoas com esse historial. Participar em muitas competições, ter uma longa carreira. Ficaria na dúvida.
zz: Não quisemos alargar o espectro, pois se disséssemos oito competições numa só temporada, com certeza que todas as pessoas iriam chegar a um árbitro. Como é que um árbitro consegue focar-se nessa mudança de chip?
ASD: É um desafio constante. É só pensar nas dificuldades que temos e tornar isso numa oportunidade. Foi sempre assim que pensei. Foram inúmeras as dificuldades que passei e é fácil qualquer pessoa, no recanto do seu lar, pensar nas dificuldades de um árbitro. Estar constantemente a dirigir competições diferentes, inclusive distrital, porque nunca podemos esquecer as nossas raízes. E por isso tenho de agradecer à AF Porto, pois foi ela que me viu nascer, me viu crescer e ajudou no percurso que fiz. Mas é uma mudança chip continua.
zz: Tecnicamente ainda arbitrou esta temporada, com a supertaça da Arábia Saudita.
ASD: Tecnicamente sim.
zz: Terminou a carreira num jogo entre o Al Nassr e o Al Hilal. Já sabia que aquele ia ser o seu último jogo?
ASD: Sim. Já sabia. Foi algo planeado e programado. Era algo que estava previsto. Mas não era descabido e a certa altura ponderou-se que fosse o jogo do Europeu.
zz: Como é que se vai para o último jogo?
ASD: Tranquilo. Foi algo planeado. Tive mais de um ano a preparar-me mentalmente para o último jogo. Ainda não tive a saudade... Seguramente vai aparecer, seguramente vou sentir o nervosismo e a gestão do jogo, pois era algo que eu gostava de fazer. Eu fui para árbitro, porque imaginava, na minha tenra idade, que era possível um árbitro não errar nenhuma vez num jogo. Esse foi objetivo que tive sempre ao longo da minha carreira: ser o primeiro a não cometer erros num jogo.
zz: E conseguiu alguma vez?
ASD: Acabei a carreira sem conseguir atingir essa realidade. Mas esse era o meu grande objetivo. Conseguir que ninguém falasse de mim, que ninguém me dissesse nada.
zz: Quando é que percebeu que isso era utópico?
ASD: Passados poucos anos.
zz: Depois a mensagem passou a ser: «Quero errar menos.»
ASD: Certo. Depois passou a ser: Eu vou ser o melhor, porque vou errar menos do que os outros.
zz: Porque toda a gente também falha num jogo de futebol.
ASD: Certo. Se não, não haveria golos, não haveria interesse. Sabíamos que os resultados acabavam sempre 0-0 e não era nada agradável.
zz: Mas não houve, naquele último jogo, nenhum momento em que sua cabeça revisitou tudo o que viveu, enquanto árbitro?
ASD: Eu acho que temos uma vida demasiado curta para termos saudades daquilo que estamos a fazer. Eu, aos 30 anos, quando abandonei a minha carreira de gestão, como trabalhador numa multinacional, fi-lo consciente. Felizmente, temos uma esperança média de vida cada vez mais alargada e sempre achei aborrecido fazer a mesma coisa a vida toda. Nunca quis isso para mim. Por isso, aos 30 anos abandonei a minha carreira de gestão, depois de me ter formado para exercer essa função e agora aos 44 achei por bem terminar a carreira. Já tive direito a uma vida profissional, agora terminei a segunda e acho que posso ter direito a uma terceira vida profissional. Isto é bom, porque quebra rotinas, dá-nos desafios e eu gosto disso, porque dá-nos desconforto, para evoluirmos. Foi por isso que terminei a carreira de uma forma programada, bem planeada e tenho a certeza de que o que vem aí, vai ser melhor.
zz: Foi agora, mas poderia ter sido há um ano.
ASD: Tínhamos o Campeonato da Europa pela frente. No início da temporada passada houve ponderação para que o final da minha carreira fosse nessa altura, cheguei a falar sobre o tema com a Comissão de Arbitragem, mas como havia um Europeu pela frente e também o sonho de fazer uma final pelo meio...
zz: E houve...
ASD: Foi mais uma vez um bom planeamento (risos). Digamos que foi o planeamento perfeito. Foi bingo e está feito.
zz: O Artur Soares Dias falou de um tema relacionado com o pós-carreira: como é que um árbitro prepara isso?
ASD: Ao contrário dos bons jogadores, não recebemos uma compensação financeira que nos permita olhar para o final da carreira e não fazer mais nada. Fruto da formação que tive, aos 32 anos, quando me tornei profissional de arbitragem comecei a criar várias empresas. Preparei a minha reforma mais de 12 anos antes de terminar a carreira de árbitro. Sempre tive a ideia de acabar a carreira aos 45 anos e tive a visão de olhar para o fim com algum tempo de antecedência. Preparei a minha saída com tempo e ao dia de hoje estou tranquilo, com uma boa realidade social e económica.
zz: É verdade que os árbitros vão parar a árbitro porque gostam de futebol e sonharam ser futebolistas?
ASD: É verdade, mas os meus pés não ajudavam... (risos)
zz: É importante ter esse discernimento.
ASD: Tentei jogar futebol, tentei jogar basquetebol, sempre fui um homem do desporto, o meu sonho era ir aos Jogos Olímpicos.
zz: E foi concretizado.
ASD: Verdade. Saí feliz e estou tranquilo. Saí quando quis e como quis e não porque fui empurrado, porque tive alguma limitação. Gosto de partilhar este estado de espírito, porque é verdadeiro. Ao contrário da minha capacidade para ser futebolista. Foi um período onde me senti defraudado.
zz: Mas forçou durante algum tempo?
ASD: Foi durante duas épocas, tal como o basquetebol, mas não fui muito feliz. Por isso, acabei por ir parar à arbitragem, por exclusão de partes e também por influência do meu pai, que me dizia muitas vezes que não queria que eu fosse para árbitro. Mas, como qualquer jovem, quando os pais dizem que não, nós dizemos que sim. Só tenho pena do meu pai não ter visto aquilo que eu lhe dizia: Vou ser melhor do que tu.
zz: Ó careca...
ASD: Isso mesmo. Tratava-o assim. Dizia-lhe muitas vezes que ia ser melhor do que ele, que ia chegar mais longe, porque sabia que ia ser capaz.
zz: O que aprendeu com ele?
ASD: Tudo. Tudo. Devo uma boa parte também à minha mãe: A ela e ao meu pai, pelos valores e princípios que me transmitiram. A seriedade, a retidão...
zz: O professor Henrique Calisto já disse várias vezes que o seu pai dizia aos jogadores que podiam chamar-lhe o que quisessem, mas que não poderiam levantar os braços.
ASD: É verdade. Está relacionado com o facto de não ferir a liderança de um árbitro. Eu dizia isso muitas vezes aos jogadores, para não levantarem os braços, falarem comigo de forma educada, dizia que não era pai deles, nem filho deles... Eu dizia muitas vezes aos jogadores para não estragarem o jogo, pois o nosso objetivo, de todos que estavam no encontro, era valorizar o encontro de futebol. Alguns conseguiram levar isso à risca, outros nem por isso e tiveram de sair alguns cartões.
zz: É num jogo do Benfica, no Estádio da Luz, que decidiu que queria ser árbitro.
ASD: É verdade. O meu pai foi fazer um jogo, eu fui com ele, como adepto do árbitro... Eu fui atrás dele... O meu pai tinha uma imagem muito carismática.
zz: Era numa altura em que os filhos dos árbitros ainda podiam ir aos estádios.
ASD: É verdade. Essa é uma das grandes lamentações que tenho: as famílias dos árbitros não poderem ir jogos... Não só os filhos dos árbitros, mas também as próprias famílias. Ainda temos um caminho longo para percorrer.
zz: As famílias até podem ir, mas no anonimato.
ASD: Mesmo. O meu filho tinha o sonho de entrar comigo em campo, tal como acontece com os filhos dos jogadores. Ele pediu-me muitas vezes e eu nunca consegui concretizar esse desejo. Gostava de entrar comigo de mão dada... Ainda é um caminho que temos a percorrer e pode ser possível, mas é preciso que toda a gente esteja alinhada com isso.
zz: Quem sabe se não vamos ter aí uma criança com a camisola «Eu sou o filho do árbitro»?
ASD: Só espero que o jogo corra bem. (risos)
zz: Voltando atrás, decidiu ser árbitro, num dia em que foi com o seu pai para um jogo.
ASD: Sim. O meu pai tinha uma imagem muito presente e eu achava piada ao facto das pessoas reconhecerem o meu pai. A certa altura fui a Lisboa ver um jogo, que era no Estádio da Luz, e fui para a zona dos balneários com o meu pai. E foi essa situação que me levou a gostar daquela sensação e querer estar no centro daquelas realidades. Lembro-me dele entrar para aquecer, eu percorrer aqueles corredores estreitos, subir ao relvado e ver o estádio cheio, com pessoas alegres na bancada, algo que se devia ver mais vezes e que infelizmente não acontece tanto. Gostei daquela pressão e decidi que era aquilo que queria ser. Felizmente consegui reproduzir esses momentos no Estádio da Luz, mas também, como dizia ao Careca, nos palcos internacionais.
zz: Desse jogo não se lembra de nenhum insulto?
ASD: Não, porque o meu foco não estava para aí virado, confesso.
zz: Essa nunca pode ser a preocupação de quem quer ser árbitro?
ASD: Não, de todo. Mas também tive comportamentos menos positivos. A certa altura, quando também era jovem e era o filho do árbitro, no Restelo, fui ver um jogo, fiquei num camarote a ver o jogo, mas um diretor teve de me retirar de lá, porque os adeptos começaram a tratar-me mal, por saberem que eu era o filho do árbitro. Foram os primeiros dissabores e o descer à terra. Foi sentir que nem tudo ia ser como aquele sentimento que tive no Estádio da Luz.
zz: Quando arbitrou este primeiro jogo, pensava que poderia atingir o nível que atingiu?
ASD: De todo. Eu brincava com o Careca só para o arreliar. Era brincadeira de pai e filho. Nunca imaginei sequer que ia chegar à elite da UEFA, participar num Campeonato do Mundo, duas vezes num Campeonato da Europa, Jogos Olímpicos... Nem nos meus melhores sonhos achava que isso pudesse ser possível. Como sonho, desde miúdo, pensava em estar nuns Jogos Olímpicos...
zz: Mas como atleta.
ASD: Sim, mas os árbitros são atletas e treinamos tanto ou mais que os jogadores, preparamo-nos tanto ou mais do que os jogadores e treinadores. Eu treinava todos os dias...
zz: Basta pensarmos que uma equipa de futebol preocupa-se com o adversário e o árbitro preocupa-se com duas equipas.
ASD: Verdade. Durante a carreira temos sempre necessidade de criar objetivos e senti sempre essa necessidade. O meu último objetivo era ter 300 jogos na Liga e falhei esse.
zz: Foi tirar o curso de árbitro muito cedo: tinha que idade?
ASD: 16 anos.
zz: Foi porque percebeu que não tinha jeito para jogar?
ASD: Tal e qual.
zz: Subiu a árbitro da 1ª categoria em 2004/2005. Foi quando teve também o primeiro jogo na 1ª Liga?
ASD: Sim. Aí eu lembro-me. Foi um Moreirense x Rio Ave.
zz: Quais foram as grandes preocupações?
ASD: Duas fraldas, um biberão e muito nervosismo. Tinha apenas 24 anos e tenho de destacar aqui o Pinto de Sousa, que é uma pessoa que já não está entre nós, mas estimo muito. Sempre foi o meu presidente e fez-me uma gestão de carreira fantástica. Já na Federação Portuguesa de Futebol fez com que chegasse à 1ª Liga. Nesse jogo em concreto lembro-me de estar super nervoso, lembro-me de ter falhado uma grande penalidade logo a abrir, não vi um jogador a ser puxado...
zz: Só viu depois em casa?
ASD: Sim. Eu tinha o hábito de rever os jogos quando chegava a casa e acho que devia ser um hábito de qualquer bom profissional. Fazia algumas figuras a rever os jogos. A minha esposa lembra-se disso. Eu dizia várias vezes, para mim mesmo: Como é que tu não viste isto?
zz: Mas em campo é fácil perceber quando se comete um erro?
ASD: É, muito fácil. É só perceber o comportamento dos jogadores. Ainda bem que agora há o VAR que nos ajuda a dar a volta e corrigir os erros. Passar uma semana sobre os erros é um desastre. É a pior semana que pode existir. Estamos a dormir sobre o erro, que para os árbitros são uma derrota.
zz: Acredito que a palavra relativizar seja demasiado leviana para a situação. Mas, quando é o Artur Soares começou a arranjar soluções para controlar a forma de lidar com os erros?
ASD: À semelhança das equipas, revia o jogo, mais do que uma vez, tentava encontrar os erros, perceber o porquê de ter falhado, e durante a semana trabalhava sobre eles, para melhorar. O relativizar de que estava a falar, acontece quando conseguimos encontrar uma solução para o erro. Ou pelo menos, achamos que encontramos. A partir desse momento começamos a trabalhar para o próximo jogo. Somos iguais a uma equipa de futebol.
zz: Como era a sua semana?
ASD: Quando não tinha erros era um espetáculo (risos).
zz: Certo, mas a nível de trabalho?
ASD: Sim, mas isso também influencia o trabalho. Quando os jogos corriam bem, tudo corria bem. Era uma semana típica daquela vivida por um jogador. Ao domingo tinha o jogo, depois, quando chegava a casa, revia o jogo, porque as imagens ainda estão bem frescas. Na segunda-feira tinha treino de recuperação, juntamente com o fisioterapeuta. À terça-feira era dia de descanso, à quarta-feira era o treino de alta intensidade, normalmente era o pior dia da semana. À quinta-feira era um treino de velocidade e reação. À sexta-feira era um treino de preparação para o jogo e trabalho de força. O meu organismo sentia-se bem por ter aquelas cargas de força, antes dos jogos. No dia anterior ao jogo é um treino de preparação, normalmente é muito curto e está centrado no foco em torno do jogo. Se for possível, como acontece nos jogos internacionais, fazer no estádio, melhor ainda.
zz: Os árbitros em Portugal começaram a ser profissionais bastante mais tarde do que as equipas. É injusto pedir igualdade aos árbitros, quando por vezes as condições nem são as mesmas?
ASD: Não são as mesmas, mesmo.
zz: Ninguém tem essa perceção.
ASD: Mesmo. Se calhar temos um fisioterapeuta para 30 árbitros e essa pessoa só vai poder acompanhar-nos durante um período num dia. Depois, só podemos ir ao relvado, se ele estiver disponível, não estiver a ser tratado. Se ele estiver ocupado temos de ir treinar para a rua, para o tartan, para o sintético. Acabamos por não ter as condições ideais, para as exigências que nos colocam. Depois temos todo o resto do trabalho, que passa pelo psicólogo, pelo scouting... Existem, mas se calhar em número reduzido. Há um psicólogo para 90 pessoas. Eu acredito que toda a gente precisa de psicólogo. Quando subi à 1ª Liga contratei o meu psicólogo, porque achava que poderia melhorar com esse acompanhamento. Poderia fazer uma melhor gestão de conflitos, uma melhor comunicação, uma melhoria das frustrações, da pressão... Eu tinha 24 anos e não estava preparado para aquela pressão.
zz: Isso é um investimento na carreira.
ASD: Certo. Eu fiz isso, na altura também contratei o meu fisioterapeuta... Eu investi na minha carreira, pois achava que ia chegar longe. Tinha um nutricionista... Agora já começa a existir isso, mas ainda não é com um número suficiente, nem contínuo. Não pode ser um acompanhamento esporádico, porque se assim for não é possível esperar resultados.
zz: Na Europa como funciona?
ASD: Existem várias realidades. Há um caminho a percorrer, pois para exigirem tanto, também têm de dar alguma coisa.
zz: Qual foi o jogo em que sentiu mais dificuldades, porque em casa tinha os filhos doentes e a sua cabeça também estava em casa?
ASD: Esse é outro problema. A preparação psicológica. Aconteceu algumas vezes.
zz: Tem memória de um jogo que não lhe correu tão bem por esse motivo e as equipas não fazem ideia?
ASD: Eu ia falar de um jogo, que não está relacionado com o que perguntou, mas que foi muito marcante. Aconteceu no Estádio da Luz e foi no primeiro jogo após o falecimento do meu pai. Todo o estádio assobiou o minuto de silêncio... O meu pai não teve culpa nenhuma de ter morrido.
zz: 4 de fevereiro de 2009. O seu pai tinha falecido no dia 29 de janeiro.
ASD: Não fez sentido as pessoas assobiarem. Eu também tenho direito à privacidade, ao respeito, à educação.
zz: Em algum momento pensou em não arbitrar essa partida?
ASD: Não. Eu recebi o jogo e sempre quis fazer o jogo. O meu pai foi um homem da arbitragem, eu sou um homem da arbitragem e estou muito grato à arbitragem. Gostei muito de fazer aquilo que fiz, orgulho-me daquilo que fiz e acho que ele iria ficar contente por eu ir ao jogo. Mas, a minha carga emocional não era a melhor e estar num estádio onde estamos a realizar um minuto de silêncio e está toda a gente a assobiar, não ajuda nada. As pessoas não têm cultura desportiva e não sabem estar. Felizmente tem havido evolução nessa matéria. Por exemplo, vimos agora o Nuno Almeida a terminar a carreira e a bancada a aplaudir. Isto é que é de enaltecer, isto é que é cultura desportiva. Isto é que é valorizar o espetáculo e o negócio, mas temos de ser nós a valorizar estas situações e não as más.
zz: Mas naquele episódio, algum dos treinadores foi falar consigo?
ASD: Entre treinadores, jogadores, presidentes, dirigentes, fora das quatro linhas, as pessoas são todas fantásticas. Têm bom trato, são educadas... Na tensão de um jogo, alguns podem sair da normalidade, mas a maioria deles tem a consciência e a humildade de reconhecer os erros, tal como eu próprio. Já disse coisas que não deveria ter dito, no calor de um jogo. O que é bom é ter consciência dos erros e falar com as pessoas depois. Esse jogo na Luz foi marcante e fiz lá muitos dérbis e muitos clássicos... Eram jogos que gostava de fazer.
ASD: Se calhar também foi essa a quem mais erros cometi... Há boas coisas e más coisas.
zz: O Benfica foi a equipa que mais apitou, depois foi o SC Braga, com 58 jogos, depois o FC Porto com 56 e o Sporting com 55.
ASD: A diferença é pouca.
zz: Acredito que esses jogos impactantes deixem marcas. Qual foi aquele em que sentiu que correu mesmo bem?
ASD: Antes disso ia dizer aquele que correu mesmo mal.
zz: Não quisemos ir para esse lado.
ASD: Mas não há problema, porque esses é que nos ajudam a aprender. Foi um SC Braga x Vitória SC, já na Pedreira.
zz: Foi numa sexta-feira Santa.
ASD: Foi um jogo... Meu Deus! Lembro-me de ter chegado a casa e de ter pensado que não deveria ter saído de casa. Mas saí e não podia recusar a ida a um jogo. Foi o jogo em que mais aprendi. Maior gestão de frustração, melhor gestão do erro, melhor trabalho de equipa...
zz: Esse jogo começa com uma grande penalidade que foi revertida.
ASD: Com uma mão, que afinal era cabeça. Do meu ângulo pareceu-me mão, mas o meu assistente funcionou como vídeo-árbitro e disse-me que o lance tinha sido com a cabeça. Eu perguntei se ele estava seguro da decisão e a partir desse momento, nunca mais consegui agarrar o jogo e foi um encontro muito difícil.
zz: E é um SC Braga x Vitória SC...
ASD: É um espetáculo. Aquele jogo é um espetáculo. Eu gostava muito desses jogos, quanto mais quentinhos, melhores. Esse foi um jogo menos bom... Quanto aos jogos bons... Arbitrei uma vez um Benfica x Porto que foi fantástico. O jogo correu muito bem, só se falou de bola e era isso que eu procurava sempre. Quando não falavam de mim, ficava todo contente. Nunca quis ser estrela. O meu objetivo em qualquer jogo era que não dessem pela minha presença. Por isso é que não apontava cartões...
zz: Quando decidiu não apontar os cartões?
ASD: Num dos processos de equipa de arbitragem que tínhamos semanalmente, ainda sem haver o VAR, decidimos que o objetivo era passar despercebido, pois se isso acontecesse o foco passaria a estar mais no jogo, nos jogadores... Eles é que são as estrelas, nós nunca pretendemos ser o centro das atenções. Ou seja, cada vez que o jogo parava e eu dava um cartão, a câmara focava o árbitro... Se eu apontasse, era mais tempo que estava em destaque. Então, avançámos para um plano prático: os assistentes passaram a apontar os cartões e eu demorava menos com as paragens, o jogo tinha mais tempo útil e havia menos destaque do árbitro na câmara. Eu gostava de andar muito despercebido na rua, coisa que a certa altura passou a ser impossível.
zz: Qual foi a pior coisa que lhe disseram na rua?
ASD: Nem sei e nunca valorizei.
zz: Mas entristecia-o?
ASD: Sim, porque eu estava a tentar fazer o meu melhor. O meu sonho de criança, recordo, era fazer um jogo de futebol sem erros. Mas é muito triste sentir que erramos e as pessoas não perceberem que tentamos fazer o melhor. Cheguei a desafiar alguns jogadores e treinadores a tentarem fazer melhor. Alguns deles, depois desabafaram que tinham tentado e que sentiram a dificuldade. Depois, pedia para serem tolerantes e ajudarem a tornar as coisas mais fáceis: não simulando, não gesticulando, não discutindo e a valorizarem o futebol.
zz: Qual é o sentimento que o árbitro tem quando ouve um treinador a reclamar por perda de tempo e depois faz algo semelhante?
ASD: Eu tentava sempre ser clarividente, ter correção e ser frontal. Era o que eu tentava ser com os treinadores. Algumas vezes confrontava os treinadores que contestavam alguma coisa e a equipa estava a fazer o oposto. Os treinadores tentam sempre usar algo para benefício próprio. Eu tenho uma sugestão de melhoria, que passa por olhar para os regulamentos de forma a melhorar o espetáculo. Já temos alguma tecnologia, mas seria importante os regulamentos serem diferentes. Por exemplo, se um jogador for admoestado com um cartão amarelo, por simulação, esse cartão deveria valer mais alguma coisa. Se um jogador agride outro jogador o castigo deveria ser mais pesado. Não ser dois jogos, mas sim três, para ele perceber que aqueles comportamentos não valorizam o espetáculo.
Por exemplo, se um jogador souber que se simular fica um jogo de castigo, vai deixar de simular. É muito triste ver treinadores que estão a contestar o árbitro, são expulsos e depois não acontece nada, porque os regulamentos obrigam a pagar uma multa... Já tive um treinador que depois de ter sido expulso, falou à imprensa na conferência e disse para enviar a conta da multa para o árbitro, pois não sabia se o árbitro conseguiria pagar. Alguns brincam com isto... A roda está inventada, as boas práticas existem por aí fora, basta haver coragem para implementar. Vemos um comportamento desajustado em Inglaterra e a multa é alta. Eles sabem que isso é ruído para o espetáculo.
zz: E não é necessário.
ASD: Claro e eles conseguem colocar essas coisas em prática. E por isso conseguem vender melhor os direitos televisivos, conseguem ter mais gente nos estádios, conseguem ter mais sponsors... Tudo isto é uma roda gigante que está inventada.
zz: Quando começou a estudar as equipas que iria arbitrar o que é que mais o surpreendeu? Os fiteiros, os violentos...
ASD: Fiquei sempre com mais atenção para aqueles jogadores que são simuladores, porque é muito difícil. A chave para uma boa decisão é o bom posicionamento. Quando estamos em casa temos vários pontos de vista, no campo não. Só temos um ângulo. Se estivermos no ângulo bom, perfeito, mas já nos aconteceu a todos ver três ângulos e só no último é que nos apercebemos que foi uma simulação. Os jogadores fazem esse tipo de lances muito bem feitos, porque são artistas e esses artistas não valorizam o espetáculo.
Daí, tal como disse, seria importante haver um regulamento que penalizasse esse tipo de jogadores. Esse tipo de jogadores eram aqueles que nos obrigam a grande atenção e aos maiores desafios. Há pequenos toques que lá dentro parecem grandes toques e o inverso também existe. Depois é a história do Pedro e do Lobo. Nunca sabemos quando o Pedro nos vai enganar ou quando o Lobo vem.
zz: Como analisava isso, quando preparava os jogos?
ASD: Se sabia que iria ter um jogador mais simulador, estava mais em cima, tentava procurar a melhor localização possível, para tomar a melhor decisão.
zz: É difícil quantificar se o Artur Soares Dias foi o melhor árbitro português de sempre e não é esse desafio deste Ponto Final, mas teve uma atitude que nenhum árbitro teve. Em 2021, Wembley, jogo entre Turquia e País de Gales, para o Campeonato da Europa. O Artur Soares Dias dirigiu esse jogo e entrou em campo e acenou para a câmara, com o olhar. O momento tornou-se viral, porque dias antes o humorista e radialista da Rádio Comercial, Nuno Markl, tinha feito uma música para si. Estava à espera disso?
ASD: Não, claro que não.
zz: Não é comum haver o adepto do árbitro.
ASD: Pois não. Os adeptos que temos são a família e os amigos. Lembro-me, do nada, durante o Europeu aparecer uma música a apoiar a equipa de arbitragem, tal como existia uma música a apoiar a seleção. Tive vários amigos a partilharem a música comigo. No início pensei que vinha coisa má, pois quando um árbitro é notícia não é coisa boa. Mas quando ouvi e vi que era algo muito bom, por parte da Rádio Comercial e do Nuno Markl em particular, era único, épico.
zz: Sentiu que tinha de responder ao desafio?
ASD: Exato. Na altura a forma que encontrei que foi aquela que viram. Sem infringir e influenciar qualquer que fosse a minha preparação para o jogo, porque estava ali também a representar o meu país... Só tenho pena de não ouvir o hino, como as seleções.
zz: E entrou em campo e acenou...
ASD: Acenei a cabeça e pisquei um olho, como forma de agradecimento.
zz: A própria música dizia isso. Houve ali uma espécie de código, que foi cumprido.
ASD: É engraçado que achou espetacular e a maioria das pessoas achou espetacular, mas fui alvo de críticas.
zz: Se calhar de topo...
ASD: Sim, de topo nacional. Internacional, não. Aquilo não influenciou em nada o meu jogo. Foi mais um jogo bem conseguido em representação de Portugal e eu sabia que aquele aceno não iria influenciar a minha prestação no jogo. É de lamentar quando há pessoas que conseguem ver maldade nisto, quando o árbitro é um ser igual aos outros. Há momentos de concentração e de desconcentração, há momentos felizes e infelizes, há momentos humanos.
zz: E este foi um momento humano.
ASD: Como humano, senti-me na obrigatoriedade de agradecer, por ter sido acarinhado pela sociedade civil. Era essencial e obrigatório fazer alguma coisa, mesmo que fosse castigado a seguir. O pouco apoio que recebi na minha carreira, esse foi um deles. Trataram-me como trataram a seleção. Houve um hino para a seleção de Portugal e houve um hino para a equipa de arbitragem portuguesa.
zz: Quando recebeu a primeira vez as insígnias da FIFA achou que tinham vindo cedo de mais?
ASD: Na altura era muito difícil chegar a árbitro internacional. A partir da terceira temporada andei a lutar muito para chegar a árbitro internacional e foram momentos difíceis. Tal como é muito difícil chegar à elite da Europa.
zz: Do Mundo será ainda mais? O Artur Soares Dias até nos pode explicar como são escolhidos os árbitros para um Campeonato do Mundo.
ASD: Existe um grupo de elite na UEFA, composto por 30 árbitros, na minha altura eram cerca de 23/24. Para chegar a essa elite é muito difícil, pois é composta por todos os árbitros da Europa. Existem cerca de 200 árbitros internacionais e dessa lista cerca 30 fazem parte do grupo de Elite e desses 30 são escolhidos 16, normalmente, para os Campeonatos da Europa e para o Campeonato do Mundo são escolhidos apenas nove. Sendo certo que as Big-5 ocupam um lugar cada e depois há quatro vagas para gerir por esses 30 árbitros.
zz: As forças políticas mexem-se muito nesse capítulo?
ASD: Naturalmente, como em todo o lado, mas fruto da competência.
zz: Quando recebeu as insígnias pensou que finalmente tinha aquele escudo.
ASD: Isso mesmo. Lembro-me de ter feito o primeiro jogo em Braga. Foi um motivo de muito orgulho.
zz: A final da Conference League está no topo dos topos, dos jogos internacionais?
ASD: Todos os jogos internacionais eram especiais, mas é óbvio que as finais são as finais. Lembro-me de fazer uma final do Torneio de Toulon... Era maçarico.
zz: O Brasil ganhou 0-1 à Colômbia... Talisca estava no banco do Brasil.
ASD: Essa parte não me lembro. Mas lembro-me que foi uma final fantástica. A final da Conference League é um jogo importante, pois claro, mas os Jogos Olímpicos de Tóquio... Eu sabia que se a final fosse Brasil x Espanha, politicamente, eu não poderia arbitrar. A FIFA olha sempre para essas questões todas e eu iria dirigir essa final. Fui 4º árbitro, como prémio de consolação. A meia-final da Liga dos Campeões entre o Real Madrid x Manchester City foi algo muito especial. Quando recebi a nomeação disseram-me iria fazer a final antecipada da Liga dos Campeões.
zz: Como é que vivem esses jogos?
ASD: Com uma adrenalina brutal. Não se pode pensar na dimensão do jogo. É deixar o jogo fluir e termos a certeza que estamos entre os melhores do Mundo. Temos de aproveitar essas oportunidades, para demonstrar como somos bons e penso que foi isso que aconteceu.
zz: O Artur Soares Dias já nos contou de como investiu na sua carreira, mas não nos contou que tirou um curso de treinador.
ASD: Todas as épocas eu arranjava coisas para fazer. Eu procuro continuadamente a melhoria, para fazer mais e melhor. Fui assim enquanto árbitro e sou assim enquanto empresário. Além disso, gosto de estar na minha zona de desconforto e a certa altura percebi que não tinha uma boa leitura de jogo e tinha de melhorar isso. Eu fui tirar o curso, não para ser treinador.
zz: Tem o nível 1?
ASD: Nem isso. Eu fui ao curso de treinadores, para ouvir os treinadores a falarem de treino e táticas. Eu sentia que tinha essa lacuna e queria perceber como eles pensavam. Eu tentei, como faço quase sempre, colocar no papel do outro e gostava que muitas vezes também tivessem tentado colocar-se no papel do árbitro.
zz: Foi uma carreira bonita?
ASD: Foi espetacular. De topo, mesmo. Saí com a cereja em cima do bolo, por isso quis sair para não estragar mais.
zz: E quem merece o seu maior agradecimento?
ASD: A família, claro. Privei-os muitas vezes de muita coisa e ainda hoje isso acontece. A minha mãe foi muito maltratada... Portanto, claramente a família e os amigos, que me acompanharam desde início merecem o meu maior agradecimento e as desculpas vão para aqueles para quem fui injusto e tratei-os mal.
zz: Normalmente pedimos aos jogadores, neste programa que nos digam o 11 da vida deles. Não lhe vou pedir isso a si, mas vou pedir que nos indique o nome de três árbitros que o inspiraram.
ASD: Porventura, três é pouco, mas nos primeiros cinco coloco o meu pai. Eu nunca tive um árbitro, para além do meu pai, que fosse uma inspiração verdadeira, porque qualquer um deles tinha qualidades fantásticas, mas nenhum era o perfeito. Sempre quis ter a minha identidade, ser diferente dos outros todos e tentei construir-me com todos eles. Vítor Pereira foi um exemplo, claro. Olegário Benquerença, outra referência em Portugal e que fez um percurso fantástico. O Pedro Proença, outra inspiração pelo profissionalismo e a forma de ver o jogo. Lá fora, temos o Massimo Busacca que tinha características únicas de gerir o jogo, o Collina com uma body language brutal e a forma de liderar fantástica. Lembro-me de nas primeiras vezes em que conversamos ter dificuldade em falar com ele, pela sua imagem. O Rosetti, o Orsato, que fez os dois Europeus comigo... Ele começou comigo e terminou comigo... Dois europeus em conjunto, o Mundial da Rússia, o Mundial de Sub-20 na Nova Zelândia... Eu tentei compilar as características deles e aproveitar o melhor de cada um. Não fui perfeito, mas tentei.