Trivela
·11 de dezembro de 2022
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·11 de dezembro de 2022
A Inglaterra havia aprendido que não teria vida fácil em grandes competições de futebol quando começou a sediar a Eurocopa de 1996. A sua única final completava 30 anos. A empolgação era enorme, o futebol estava voltando para casa, e ela foi relativamente justificada pelo time de Terry Venables, que chegou às semifinais, mas não resistiu a dois fantasmas: a Alemanha e os pênaltis. Todos os alemães acertaram suas cobranças em Wembley. Todos os ingleses também. Menos um. E por isso, não foram vazias as palavras de consolo que Gareth Southgate entregou para Harry Kane neste sábado no estádio Al Bayt, no Catar, após a derrota para a França nas quartas de final da Copa do Mundo.
Southgate tenta dar um título à Inglaterra, em primeiro lugar, porque é seu trabalho, e ele é relativamente competente nele, mas também é um homem em busca de redenção, mesmo que não seja a força motriz que o tira da cama todos os dias. A magnitude daquele momento foi tamanha que ele recebeu um abraço do então primeiro-ministro, John Major, ainda nos arredores do estádio, e Liam Gallagher, vocalista de um Oasis que estava no auge na época, desceu aos vestiários para consolá-lo de um jeito bem Liam Gallagher: “Não se preocupe, porra, porque pelo menos você teve as bolas para ir lá cobrar”.
Southgate ainda estava no meio da sua carreira como um jogador de futebol que disputou 426 jogos de Premier League – o 30º na lista histórica – e defendeu a seleção inglesa 57 vezes, muitas delas depois de sentir que havia estragado o verão do seu povo que havia ficado muito animado com as chances da Inglaterra na Eurocopa. A imprensa havia acampado na porta da sua casa. Em uma entrevista a uma jornalista do Telegraph, pouco depois da derrota para a Alemanha, Southgate contou como era o processo.
“Eles sabiam que eu estava prestes a me casar, então perguntaram se o casamento ainda estava de pé. Eu disse que sim, claro, ela não me expulsou de casa. No dia seguinte, a manchete era: ‘Mulher de Southgate apoia seu homem’”, disse. Em outro caso, a sua mãe deu uma longa entrevista e a única frase usada foi “por que você só não deu uma bomba para dentro?” que ela havia perguntado ao filho. Em uma época pré-redes sociais, Southgate recebia cartas com xingamentos – e também mensagens positivas e de carinho.
“Eu queria simplesmente me arrastar e, bem, não morrer, isso seria exagerado. Mas eu queria me afastar e que ninguém me notasse. As coisas melhoraram depois do luto inicial – luto é uma palavra forte, mas da tristeza inicial. Quando um incidente assim acontece, você perde um pouco o roteiro. É difícil não perder contato com a realidade quando você está nas três primeiras páginas de todos os jornais. Mas há coisas piores que podem acontecer e no dia seguinte você ainda tem que pagar a conta de luz e de gás”, afirmou, ainda poucos dias depois do erro.
Com a passagem do tempo, particularmente na seleção inglesa, novos erros de pênaltis passaram a acompanhar o seu, e ele chegou a dizer naquela conversa com o Telegraph que, em 20 anos, as pessoas vão se sentar em um pub e simplesmente dizer ‘lembra aquele idiota que perdeu aquele pênalti’ e pronto. “Novos jogadores vão chegar, novos heróis, novos vilões. Somos apenas uma parte de uma longa esteira da vida, e jogadores que foram famosos dez anos atrás agora são apenas nomes nos livros”, afirmou.
Na prática, não foi bem assim que aconteceu. “Eu me digo o tempo inteiro que as pessoas seguiram em frente e não estão mais incomodadas com aquele pênalti. E então eu estou no lobby de um hotel, e uma garota vira para o namorado e diz: acho que esse é o cara que perdeu aquele pênalti”, escreveu, em sua autobiografia em 2003. Nove anos depois, em entrevista à revista FourFourTwo, a mesma coisa: “Todo dia, eu ando na rua, e é sempre mencionado para mim. Claro que é chato. Quando você jogou por 20 anos e essa é a primeira coisa que as pessoas pensam sobre você. Alguns ainda me xingam sobre isso nas ruas”.
Evidentemente que a nuvem que o acompanhou durante toda a carreira de jogador não se dissipou quando ele assumiu a seleção inglesa. Ainda na fase de grupos da Copa do Mundo de 2018 era questionado se estava fazendo algum trabalho especial com os jogadores, caso houvesse alguma disputa de pênaltis. Uma das suas principais qualidades como técnico da Inglaterra, Southgate adotou uma postura equilibrada e sóbria. Reconheceu a importância do fantasma, disse que sua comissão estava fazendo um trabalho com analistas de vídeo para dar informações a Jordan Pickford e que havia adotado “diferentes estudos e métodos”.
A oportunidade de testá-los chegou logo nas oitavas de final contra a Colômbia, quando a Inglaterra venceu apenas sua segunda disputa de pênaltis na história das grandes competições, após uma contra a Espanha que antecedeu a fatídica derrota para a Alemanha na Euro em casa. “(O erro de 1996) nunca sairá das minhas costas, infelizmente. É algo que viverá comigo para sempre, mas agora é um momento especial para este time e espero que dará esperança às novas gerações de jogadores que virão porque eles veem o que aconteceu. Na vida, sempre temos que acreditar no que é possível e não sermos impedidos pela história ou pelas expectativas”, disse.
Aquela vitória sobre a Colômbia parecia ter afugentado o fantasma dos pênaltis, mas ele retornou com tudo na Eurocopa de 2021. Novamente em casa, a Inglaterra teve a chance de conquistar seu primeiro título em 55 anos, mas perdeu para a Itália, com três jogadores errando cobranças. Foi até estranho que alguém com o histórico de Southgate tenha cometido o erro crasso de colocar Rashford e Sancho nos minutos finais da prorrogação, completamente frios, para bater. Foi um baque psicológico muito grande, esses jogadores foram alvos de ofensas racistas, mas pelo menos eram três para dividir o fardo. Não foi uma derrota marcada por apenas um rosto como a de 1996. Como a deste sábado, contra a França.
Harry Kane foi o artilheiro da Copa do Mundo de 2018, e muito se falou que metade dos seus seis gols saíram da marca do cal. Agora ficou bem claro como não se pode dar como certo um gol de pênalti. A posição em que ele estava era difícil porque, por mais preciso batedor que seja, enfrentava o goleiro do seu próprio clube, talvez o que melhor conheça o seu estilo, com quem mais trocou ideias sobre o assunto, contra o qual mais treinou batidas. Uma fonte extra de pressão em um momento tão nervoso de qualquer maneira. E ele teve dois. No primeiro, encheu o pé alto no ângulo, sem frescura, e empatou a partida. No segundo, parece ter tentado fazer o mesmo e não pegou tão bem na bola.
Aquele gol, aliás, o faria superar Wayne Rooney como maior artilheiro da história da seleção inglesa e, como Southgate, 26 anos atrás, a sensação é de ter decepcionado os companheiros. Kane é o capitão da Inglaterra, um dos poucos jogadores perto dos 30 anos, uma fonte de experiência em um elenco jovem, até pelos calos que acumulou ao longo da vida. Está prestes a se tornar trintão sem nunca ter conquistado um título. O bonde do Manchester City passou ano passado, provavelmente não retornará e vai saber se outro aparecerá. Se é ambicioso estrear logo com a Copa do Mundo, foi também mais uma oportunidade que passou por cima do travessão de Hugo Lloris.
Ele está ciente do peso de cobranças de pênalti para a cultura do futebol da Inglaterra, sabe o que terá que enfrentar daqui para a frente ao se tornar o garoto-propaganda de mais uma campanha que terminou sem troféus para o seu país. O único consolo talvez seja ser treinado por um dos únicos homens que pode abraçá-lo e dizer que sabe o que ele está sentindo de maneira verdadeira e genuína.