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·15 de dezembro de 2022

Em pouco tempo, Regragui liderou um trabalho extraordinário que o fará ser aplaudido pelo resto da vida

Imagem do artigo:Em pouco tempo, Regragui liderou um trabalho extraordinário que o fará ser aplaudido pelo resto da vida

A Copa do Mundo condensa quatro anos de trabalho em, no máximo, sete partidas. Walid Regragui precisou de pouco mais de três meses para se colocar à frente de treinadores com trajetórias bem mais longas. São nove jogos totais, seis deles no Mundial, que valerão para que o nome do técnico de Marrocos seja reconhecido pelo resto da vida, e além, entre seus compatriotas. E tudo muito merecido. Que tenha herdado um processo de seus antecessores, desde Hervé Renard a Vahid Halilhodzic, a impressão digital de Regragui está expressa nos Leões do Atlas. São marcas de sua vida, afinal – como treinador de clubes, como ex-jogador, como universitário, como filho de imigrantes. Assumiu um time que deixava uma incógnita, agregou os craques renegados, criou um senso de unidade. Mais importante: fez os marroquinos jogarem muito. A equipe sólida na defesa também tratou bem a bola dentro da Copa. Uma geração talentosa se superou, com o auxílio de um treinador muito qualificado – do ponto de vista tático, psicológico, comunicacional. Uma gratíssima revelação que, em nove jogos e mais 47 anos de bagagem, se coloca num lugar em que raríssimos comandantes chegaram – e que nenhum outro africano jamais tinha chegado.

Quando Vahid Halilhodzic começou a criar caso com os astros do time e tratá-los como “indisciplinados”, um entrave que sequer era novo em seu histórico como técnico de seleções, a federação de Marrocos não precisou fazer uma escolha tão difícil. Os Leões do Atlas sobraram nas Eliminatórias, é verdade, mas deixaram uma impressão na Copa Africana de Nações de que faltou qualidade na queda diante do Egito. Halilhodzic mantinha-se impassível quanto à possibilidade de conceder uma anistia a Hakim Ziyech, Noussair Mazraoui e Amine Harit, os talentos tidos como intratáveis. E se dar a preferência para tantos jogadores de habilidade era algo até óbvio para os dirigentes da federação, em detrimento ao veterano bósnio que insistia em renegá-los, melhor ainda quando um nome já pronto surgia no topo da lista de candidatos ao cargo. Walid Regragui estava no ponto para assumir como novo técnico.


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O currículo de Regragui falava por si. O treinador tinha feito trabalhos excelentes numa carreira relativamente recente por clubes. Depois de atuar como assistente da seleção, Regragui assumiu o FUS Rabat em 2014. Era um clube histórico do Campeonato Marroquino, mas que nunca tinha levado o título nacional. O time da capital se transformou numa pedra no sapato dos gigantes do país, Wydad e Raja Casablanca. Passou a se meter no topo da tabela, até faturar o inédito troféu da liga em 2016. Um feito imenso de Regragui, que não se destacava apenas por isso. O clube passou a revelar talentos, inclusive para a seleção. O comandante chamava atenção ainda pelas entrevistas coletivas, sempre um show com as respostas sagazes e os jogos mentais.

O Catar, curiosamente, descobriu o talento de Regragui antes de outros países. Depois de seis anos à frente do FUS Rabat, o técnico assinou com o Al-Duhail, uma das forças locais. Seria uma passagem relativamente curta, que durou apenas dez meses, abreviada pelos maus resultados na Champions Asiática. Ainda assim, deu tempo de conquistar o Campeonato Catariano para cima do Al-Sadd de Xavi. E não que o marroquino tenha ficado tanto tempo sem emprego. Menos de um ano depois, ele já tinha se encaixado no Wydad Casablanca, maior campeão de seu país. Uma temporada foi suficiente para conquistar mais uma liga nacional e também uma Champions Africana, desbancando o Al-Ahly de Pitso Mosimane. Montou uma equipe que combinava na medida certa presença física e bom toque de bola. Tempo de trabalho nunca foi problema a Regragui.

Quando a seleção de Marrocos caiu em seu colo, o treinador podia ser “desconhecido” a quem só olha para a Europa, mas tinha bagagem suficiente para a missão. E que bom que a federação confiou num destaque local, como todas as outras seleções africanas desta Copa. O ambiente dos Leões do Atlas nem era novo para Regragui, aliás. Ele havia sido um lateral direito de carreira modesta, de times como o Toulouse, o Ajaccio e o Racing de Santander. Ainda assim, um jogador de seleção por oito anos e 44 partidas. O camisa 2 disputou duas edições da Copa Africana de Nações e chegou até à final do torneio em 2004, quando perdeu para a Tunísia e acabou eleito o melhor de sua posição na competição. Também fazia parte de uma geração frustrada pelas ausências mundialistas que perduraram de 2002 até 2014 para os marroquinos.

E a chance para comandar a seleção, além de preencher essa lacuna com a vaga já garantida na Copa, ainda premiava uma trajetória de vida singular. Regragui, afinal, construiu sua identidade marroquina mesmo à distância do país. O técnico é filho de imigrantes marroquinos de etnia amazigh, minoria em Marrocos, que se mudaram à França. Nascido e crescido na região metropolitana de Paris, Regragui visitava anualmente a cidade de onde vieram seus familiares. Assim, nutriu de maneira muito forte sua ligação com os Leões do Atlas. E o futebol, de início, não era mais do que um passatempo. Regragui atuava em equipes amadoras, enquanto continuava estudando. Formou-se em ciências econômicas e sociais na universidade, até finalmente deslanchar como futebolista.

Regragui já passava dos 20 anos quando ainda jogava nos juniores do Corbeil-Essones, clube de sua comuna que integrava as divisões regionais do Campeonato Francês. Deu sorte ao ser observado pelo técnico que o levou para o primeiro time – ninguém menos que Rudi García. O lateral veloz, talentoso e de temperamento forte logo deu um passo maior rumo ao Racing de Paris, até assinar com o Toulouse em 1999, aos 23 anos, finalmente chegando à segunda divisão. Sob as ordens de Alain Giresse, lenda da seleção francesa, ficaria ainda mais fácil de galgar novos degraus. Ainda mais fácil de absorver conhecimento. Ainda mais fácil de valorizar tudo o que aconteceria de bom na sua carreira: a primeira divisão, a experiência no exterior, os jogos pela seleção. E de traduzir isso no enorme impacto como técnico, desde os tempos de FUS Rabat até a seleção de Marrocos.

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(Laurence Griffiths/Getty Images/One Football)

Se a Copa do Mundo surgia de repente para Regragui, ela não vinha ao acaso. E isso o treinador provou desde a sua chegada, antes da Data Fifa de setembro. Se a missão era reintegrar os talentos antes escanteados, Regragui fez isso de imediato – convocou novamente Ziyech, Mazraoui, Harit. Porém, isso não significou que o novo comandante devesse jogar fora o que vinha de seu antecessor. Pelo contrário, os Leões do Atlas cresceram demais desde que Hervé Renard levou a seleção de volta a uma Copa do Mundo depois de 20 anos, em 2018. Vahid Halilhodzic já tinha chegado com esse ponto de partida. Regragui também construiu em cima, mas sem deixar de dar a sua cara.

Algumas bases de Marrocos se mantiveram. Romain Saïss e Nayef Aguerd formavam uma dupla de zaga segura desde antes, bem resguardados por Sofyan Amrabat. Também estava expressa a força pelos lados com Achraf Hakimi e Sofiane Boufal, sobre os quais o time se tornou extremamente dependente na Copa Africana, agora com o trabalho dividido junto a Mazraoui e Hakimi. Regragui também não cortou as asas de antigas apostas de Halilhodzic – longe disso, na verdade as fez voarem mais alto, com o ótimo exemplo de Azzedine Ounahi. E isso sem excluir ninguém. O trio antes repelido voltou, assim como alguns medalhões que não vinham sendo convocados e não necessariamente foram à Copa, como Younès Belhanda. Também chegaram novos talentos – Abde Ezzalzouli, Abdelhamid Sabiri, Bilal El Khannous, todos estreantes com o novo treinador.

O que fez Regragui de mais importante foi incutir a ideia de que todos teriam as mesmas oportunidades, independentemente das rusgas do passado. Mas que também teriam que lutar em campo para corresponder às suas chances. O técnico nunca negou que Ziyech deveria ter certa atenção especial por seu talento. Mas isso não o eximia de se esfolar em campo – o que o craque entendeu e fez. O mesmo se aplicava a Hakimi, Boufal, Mazraoui e ainda outros que se entregaram por inteiro à seleção, não só em qualidade, mas também em suor. E o esforço se notou em dobro de quem já era um leão. De quem não deixou o campo nem mesmo lesionado.

Com os jogadores fechados em seu propósito, Regragui implementou suas ideias. Marrocos era um time ofensivo com Halilhodzic e esmerilhou seus adversários ao longo das Eliminatórias. O novo técnico não quis perder essa virtude, mas preferiu ajustar a equipe de forma a ficar mais equilibrada. O trabalho do ataque começava na defesa. E aí vem uma característica do comandante, de outros momentos por clubes, que também se notou na seleção: a posse de bola baixa, com trocas de passes entre os defensores, como forma de atrair a pressão dos adversários e encontrar espaços para lançar nas costas. Se muitos times preferem se arriscar subindo em campo, os marroquinos prezaram por atraí-los recuando. Com armas, claro, para golpeá-los quando oportuno.

Regragui se aproveitou muito bem de um goleiro que sabe usar os pés, de zagueiros técnicos, de laterais excepcionais, de meio-campistas com boa movimentação. Tudo para que o serviço se direcionasse a dois pontas virtuosos, apoiados por um centroavante explosivo e brigador. Marrocos ofereceu o tom certo entre a qualidade na construção desde trás e a verticalidade dos ataques longos. Nem sempre deu certo, mas, quando deu, rendeu lindos tentos. Basta ver toda a movimentação contra Portugal, até o cruzamento certeiro para Youssef En-Nesyri. O mesmo para o segundo gol diante do Canadá, com um lançamento magistral de Hakimi.

Que Marrocos não abdicasse do bom trato com a bola, Regragui também nunca foi louco de deixar de reconhecer as fragilidades de seus times. E isso vem dos discursos desde os tempos do FUS Rabat: se um adversário é superior, o técnico não vai se abrir em prol de um estilo. Foi o que se viu durante a Copa do Mundo. Com linhas mais baixas, os marroquinos tinham menos dificuldades para se recompor. Fizeram muito bem o trabalho defensivo, pelo nível altíssimo de concentração de seus jogadores e também pelo encaixe de suas peças. A maneira como o trio de meio-campo facilitou aos demais companheiros no preenchimento dos espaços foi talvez o grande acerto tático do comandante. Sofyan Amrabat, Azzedine Ounahi e Selim Amallah foram imprescindíveis pela alta intensidade e pelo complemento, dando mais potência física e segurança aos companheiros técnicos.

Alguns adversários chiaram pela forma como Marrocos se defendeu e acusaram os vencedores de “retranqueiros”. Parecia uma memória convenientemente fraca, sem considerar a maneira como os Leões do Atlas eram muito mais diretos e superiores com a bola quando conectavam suas jogadas. Porque se a capacidade defensiva permitiu que os marroquinos chegassem tão longe, o time só conquistou tantas vitórias porque também soube jogar em seu momento. Não foram poucos os lances de efeito, especialmente nos dribles – Boufal, Ziyech e Ounahi que o digam. Também não foram poucas as linhas de passe de pé em pé, em grandes tramas, que renderam ótimas chances – nem sempre aproveitadas, aliás.

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(KIRILL KUDRYAVTSEV/AFP via Getty Images/One Football)

No papel, antes mesmo da Copa, Marrocos sempre teve um bons nomes – nunca foi questão, especialmente quando a anistia aconteceu. Os Leões do Atlas vinham com um dos melhores elencos da África desde 2018 e não só amadureceram nesses quatro anos, mas também ganharam melhores opções na maior parte das posições entre os titulares. A dúvida ficava sobre a falta de tempo para o novo treinador manobrar e o clima nos vestiários depois de uma mudança de rumos tão recente. Regragui foi magistral na condução desse processo. Primeiro por introduzir seu sistema rapidamente, depois por fazer os jogadores fecharem nessa ideia. O que se viu em campo é prova do que deu tão certo para os marroquinos.

A estreia contra a Croácia, um jogo difícil, provou a competência da defesa. Isso até que Marrocos já desse um banho de bola na Bélgica e fizesse por merecer a vitória construída na reta final. Momento histórico? Era só o começo. A classificação se consumaria num jogo que se abriu cedo contra o Canadá, apesar das ameaças no segundo tempo. A Espanha pintava no caminho e Marrocos entregou até a última gota de sangue para ganhar nos pênaltis, quando até merecia sorte melhor na prorrogação. E se Portugal vinha de goleada, isso não intimidou os marroquinos, superiores na primeira etapa até travarem as engrenagens adversárias na segunda.

O maior desafio para Regragui e para o Marrocos era mesmo a França. Uma equipe mais completa que os adversários anteriores, com mais qualidades individuais, com uma base já vencedora. E o que dá para dizer é que o placar de 2 a 0 não faz totalmente jus ao que se viu em campo. Sim, os Bleus foram mais eficientes e se aproveitaram logo cedo de uma escolha do treinador que parecia compreensível, mas não se encaixou. O que não se tira dos marroquinos é a forma como encararam a ocasião, como botaram os campeões do mundo nas cordas, como abafaram para sair pelo menos com o empate. O gol muitas vezes é questão de mínimos acertos, que, se não acontecessem, não excluem a qualidade do futebol apresentado por um time. Foi o que, apesar do amargor da eliminação, Regragui conseguiu fazer: seu seleção jogou muito, sem nunca abaixar a guarda, sem nunca temer quem estava do outro lado. Faltou mais nas finalizações, é claro, mas não por falta de sistema.

Antes da partida, Regragui havia pedido que seus jogadores tratassem a semifinal de Copa do Mundo como ela é: uma oportunidade rara, talvez única em suas carreiras. Assim também ele tratou o Mundial que não teve nos tempos de atleta e, como treinador, não concedeu muito tempo para se preparar. A preparação era a vida e a obra do comandante, o que parece ter conduzido esses últimos meses de trabalho, pelo conhecimento e pelo tato exibidos em tantos momentos.

E essa lucidez de Regragui nas falas, a cada ida aos microfones, foi outra virtude. A maneira de entender não só o jogo, mas todos os contextos que o circundam, certamente facilitou na hora de transmitir seus pedidos aos jogadores. Algo que transpareceu, por exemplo, depois da classificação contra Portugal. “Eu disse aos jogadores antes da partida que precisávamos escrever a história da África. Estou muito, muito feliz. A África está de volta ao mapa do futebol hoje. Tínhamos a mentalidade. Sabíamos que poderíamos fazer história para a África. Tivemos a atitude certa para nossa gente, para nós, para a África”. No fim das contas, não foi só a África que se beneficiou – foi o futebol como um todo.

A décima partida de Regragui como treinador da seleção de Marrocos acontecerá no próximo sábado. Não é a ocasião que o treinador preferia, mas não se duvida, por postura e por tamanho da história, que os marroquinos estarão sedentos para garantir o bronze. Somente Otto Glória precisou de tão poucas partidas para chegar a uma semifinal de Copa, com Portugal, em 1966. Todas as vezes que uma seleção da África chegou ao menos entre os oito melhores em Mundiais foi com um treinador estrangeiro, marca que caiu por terra e acabou superada desta vez.

Regragui tem suas honrosas façanhas para se engrandecer. Mas nada deve ser maior que o orgulho de montar um time forte em tão pouco tempo e saber que seu trabalho foi extraordinário. Nada deve ser maior que o orgulho de alegrar todo um país, e não só isso, mas também os filhos da diáspora como ele mesmo. Nada deve ser maior que o orgulho de saber que o sonho da Copa do Mundo não foi sonho, e sim realidade. Regragui fez tanta gente sonhar e se realizar junto com seus rapazes. Em tão pouco tempo, fez muito, fez história. E, aos 47 anos, com um impacto dessa magnitude, sugere que tem muito a fazer – em Marrocos ou em qualquer outro lugar.

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